Viagem apostólica do Papa Francisco a Marselha

Intervenções do Papa Francisco durante a sua viagem apostólica a Marselha, cidade francesa afetada pela crise migratória, onde participou na conclusão dos Encontros Mediterrânicos.

Sexta-feira, 22 de setembro

— Oração mariana com o clero diocesano na Basílica de “Notre Dame de la Garde

Momento de recolhimento com os Líderes Religiosos nas proximidades do Memorial dedicado aos marinheiros e aos migrantes desaparecidos no mar

Sábado, 23 de setembro

— Sessão conclusiva dos “Rencontres Méditerranéennes” no “Palais du Pharo

— Encontro com o Presidente de la República no “Palais du Pharo

— Santa Missa no “Stadio Vélodrome

— Ceremónia de despedida no Aeropuerto Internacional de Marselha


Sexta-feira, 22 de setembro

Oração mariana com o clero diocesano na Basílica de “Notre Dame de la Garde

Queridos irmãos e irmãs, bon après-midi [boa tarde]!

Sinto-me feliz por começar a minha visita partilhando convosco este momento de oração. Agradeço ao Cardeal Jean-Marc Aveline as palavras de boas-vindas e saúdo D. Eric de Moulins-Beaufort, os irmãos Bispos, os Padres Reitores e todos vós, sacerdotes, diáconos e seminaristas, consagradas e consagrados que trabalhais generosa e dedicadamente nesta arquidiocese para edificar uma civilização do encontro com Deus e com o próximo. Obrigado pela vossa presença e pelo vosso serviço! E obrigado pelas vossas orações!

Chegado a Marselha, segui o exemplo de grandes figuras – Santa Teresa do Menino Jesus, Carlos de Foucauld, João Paulo II e muitos outros –, que vieram como peregrinos até aqui para se consagrar a Notre Dame de la Garde. Coloquemos sob o seu manto os frutos dos Encontros do Mediterrâneo, juntamente com os anseios e as esperanças dos vossos corações.

Na Leitura bíblica, o profeta Sofonias exortou-nos à alegria e à confiança, lembrando que o Senhor nosso Deus não está longe; Ele está aqui, perto de nós, para nos salvar (cf. 3, 17). É uma mensagem que de certo modo nos remete para a história desta Basílica e para aquilo que representa. De facto, não foi fundada em recordação dum milagre ou duma aparição particular, mas simplesmente porque, desde o século XIII, o santo Povo de Deus procurou e encontrou aqui, na colina de La Garde, a presença do Senhor através dos olhos da sua Santa Mãe. Por isso, há séculos que os marselheses – especialmente os que navegam por entre as ondas do Mediterrâneo – sobem aqui para rezar. Foi o santo Povo Fiel de Deus que – uso a palavra – “ungiu” este santuário, este lugar de oração. O santo Povo de Deus que, como diz o Concílio, é infalível in credendo.

Ainda hoje, para todos, a Bonne Mère [Boa Mãe] é protagonista dum terno «cruzamento de olhares»: por um lado, o olhar de Jesus, para Quem Ela sempre aponta e cujo amor se reflete nos seus olhos – o gesto mais autêntico de Nossa Senhora é apontar para Jesus: “Fazei o que Ele vos disser”; por outro lado, os olhares de tantos homens e mulheres de todas as idades e condições, que Ela recolhe e leva a Deus, como recordámos no início desta oração, depondo a seus pés um círio aceso. Pois bem, neste cruzamento de povos que é Marselha, quero refletir convosco precisamente sobre este cruzamento de olhares, porque me parece que nele esteja bem expressa a dimensão mariana do nosso ministério. Com efeito, também nós, sacerdotes, consagrados, diáconos, somos chamados a fazer sentir ao povo o olhar de Jesus e, ao mesmo tempo, levar a Jesus o olhar dos irmãos. Uma troca de olhares. No primeiro caso, somos instrumentos de misericórdia; no segundo, instrumentos de intercessão.

Primeiro olhar: o de Jesus que acaricia o homem. É um olhar que se dirige de cima para baixo, não para julgar, mas para erguer quem está por terra. É um olhar cheio de ternura, que transparece nos olhos de Maria. E nós, chamados a transmitir este olhar, somos obrigados a abaixar-nos, a sentir compaixão – sublinho esta palavra: compaixão. Não esqueçamos que o estilo de Deus é o da proximidade, da compaixão e da ternura –, a assumir «a paciente e encorajante benevolência do Bom Pastor, que não censura a ovelha perdida, mas carrega-a aos ombros e faz uma festa pelo seu regresso ao rebanho (cf. Lc 15, 4-7)» (Congregação para o Clero, Diretório para o Ministério e a Vida dos Presbíteros, n. 30). Gosto de pensar que o Senhor não sabe fazer o gesto de apontar o dedo, no sentido de julgar; sabe antes fazer o gesto de estender a mão, no sentido de levantar.

Irmãos, irmãs, aprendamos deste olhar, não deixemos passar um dia sem nos lembrar de quando o recebemos sobre nós e assumamo-lo para sermos homens e mulheres de compaixão. Proximidade, compaixão, ternura. Não esqueçamos. Ser compassivo significa ser próximo e ternurento. Abramos as portas das igrejas e das residências paroquiais, mas sobretudo as do coração para mostrar, através da nossa mansidão, gentileza e acolhimento, o rosto de Nosso Senhor. Quem se aproxima de vós, não encontre indiferença e julgamento, mas o testemunho duma alegria humilde, mais frutuosa do que toda a capacidade que possais ostentar. Os feridos da vida encontrem um porto seguro, acolhimento no vosso olhar, um encorajamento no vosso abraço, uma carícia nas vossas mãos, capazes de enxugar lágrimas. Nas muitas ocupações de cada dia, não deixeis, por favor, diminuir o calor do olhar paterno e materno de Deus. E aos sacerdotes, por favor: no Sacramento da Penitência, perdoai sempre! Sede generosos como Deus é generoso connosco. Perdoai! Com o perdão de Deus abrem-se muitos caminhos na vida. E é bom que façais isto distribuindo o seu perdão sempre, sempre com generosidade, para, através da graça, desligar os homens das cadeias do pecado e libertá-los de bloqueios, remorsos, rancores e medos, contra os quais, sozinhos, não podem prevalecer. É bom redescobrir em cada idade, maravilhados, a alegria de iluminar os momentos felizes e tristes da vida com os Sacramentos e transmitir, em nome de Deus, esperanças inesperadas: a sua proximidade que consola, a sua compaixão que cura, a sua ternura que comove. Proximidade, compaixão, ternura. Sede próximos de todos, especialmente dos mais frágeis e dos menos afortunados, e nunca falte, aos que sofrem, a vossa proximidade cuidadosa e discreta. Assim neles, mas também em vós, crescerão a fé que anima o presente, a esperança que abre para o futuro e a caridade que dura para sempre. Tal é o primeiro movimento: levar aos irmãos o olhar de Jesus. Na vida, há só uma situação em que é permitido olhar para uma pessoa de cima para baixo: quando tentamos dar-lhe a mão para a levantar. Nas outras situações, é pecado de orgulho. Olhai para as pessoas que estão por terra e que com a sua mão estendida – consciente ou inconscientemente – pedem para serem levantadas. Tomai-as pela mão e levantai-as: é um gesto muito bonito, é um gesto que não pode ser feito sem ternura.

Depois temos o segundo olhar: o dos homens e mulheres que se dirigem a Jesus. Como Maria, que em Caná acolheu e apresentou ao Senhor as preocupações de dois jovens esposos (cf. Jo 2, 3), também vós sois chamados a tornar-vos, para os outros – homens e mulheres para os outros –, a voz que intercede (cf. Rm 8, 34). Deste modo, a recitação do Breviário, a meditação quotidiana da Palavra, o terço e qualquer outra oração; recomendo-vos especialmente a adoração. Perdemos um pouco o sentido da adoração, temos de o recuperar; recomendo-vos isto. Todas estas orações serão repletas de rostos das pessoas que a Providência coloca no vosso caminho. Convosco levareis os seus olhos, as suas vozes, os seus interrogativos, para a Mesa Eucarística, diante do Sacrário ou no silêncio do vosso quarto onde o Pai vê (cf. Mt 6, 6). Tornar-vos-eis o seu eco fiel, como intercessores, como «anjos na terra», mensageiros que tudo apresentam «diante da glória do Senhor» (Tb 12, 12).

E quero resumir esta breve meditação, chamando a vossa atenção para três imagens de Maria que se veneram nesta Basílica. A primeira é a grande imagem que campeia no seu cimo e A representa segurando o Menino Jesus que abençoa: como Maria, levemos a bênção e a paz de Jesus a toda a parte, a cada família e a cada coração. Semeai paz! É o olhar de misericórdia. A segunda imagem encontra-se por baixo de nós, na Cripta: é a Vierge au bouquet, dom dum leigo generoso. Também Ela traz num braço o Menino Jesus e no-Lo mostra, mas na outra mão, no lugar do cetro, segura um ramo de flores. Isto faz-nos pensar em Maria como modelo da Igreja, ao mesmo tempo que nos apresenta o seu Filho, a Ele nos apresenta também a nós como um ramo de flores, no qual cada pessoa é única, é bela e preciosa aos olhos do Pai. É o olhar de intercessão. Isto é muito importante: a intercessão. O primeiro foi o olhar de misericórdia de Nossa Senhora, este é o olhar de intercessão. E a terceira imagem, vemo-la aqui no centro sobre o altar, impressionante pelo esplendor que irradia. Também nós, queridos irmãos e irmãs, nos tornamos Evangelho vivo na medida em que O damos, saindo de nós mesmos, refletindo a sua luz e beleza com uma vida humilde, alegre, rica de zelo apostólico. Nisto sirvam-nos de estímulo os numerosos missionários que partiram deste lugar sublime para anunciar a boa nova de Jesus Cristo pelo mundo inteiro

Caríssimos, levemos aos irmãos o olhar de Deus, levemos a Deus a sede dos irmãos, espalhemos a alegria do Evangelho. Esta é a nossa vida que é incrivelmente bela, não obstante as canseiras e as quedas, e também os nossos pecados. Rezemos juntos a Nossa Senhora, para que Ela nos acompanhe, nos guarde. E vós, por favor, rezai por mim.


Momento de recolhimento com os Líderes Religiosos junto ao Memorial dedicado aos marinheiros e aos migrantes desaparecidos no mar

Queridos irmãos e irmãs,

obrigado por estarem aqui! Diante de nós, temos o mar, fonte de vida; mas este lugar evoca a tragédia dos naufrágios, que provocam a morte. Estamos reunidos em memória daqueles que não sobreviveram, que não foram salvos. Não nos habituemos a considerar os naufrágios como meras notícias de jornal, nem os mortos no mar como números: são nomes e apelidos, são rostos e histórias, são vidas despedaçadas e sonhos desfeitos. Penso em muitos irmãos e irmãs afogados no medo, juntamente com as esperanças que traziam no coração. Perante um drama assim não servem palavras, mas factos; e, antes ainda, serve humanidade, serve silêncio, pranto, compaixão e oração. Convido-vos agora a um momento de silêncio em memória destes nossos irmãos e irmãs: deixemo-nos tocar pelas suas tragédias [momento de silêncio].

Demasiadas pessoas, fugindo de conflitos, pobreza e calamidades ambientais, encontram entre as ondas do Mediterrâneo a definitiva recusa à sua busca dum futuro melhor. E, assim, este mar esplêndido tornou-se um enorme cemitério, onde muitos irmãos e irmãs são privados até do direito de ter um túmulo, acabando sepultada apenas a dignidade humana. No livro-testemunho Fratellino, o protagonista, no final da tribulada viagem que o traz da República da Guiné até à Europa, afirma: «Quando te sentas sobre o mar, estás numa encruzilhada. Dum lado a vida, do outro a morte. Lá não há outras saídas» (A. Arzallus Antia – I. Balde, Fratellino, Milão 2021, 107). Amigos, também diante de nós temos uma encruzilhada: dum lado, a fraternidade, que fecunda de bem a comunidade humana; do outro, a indiferença, que ensanguenta o Mediterrâneo. Encontramo-nos perante uma encruzilhada de civilização. Ou a cultura da humanidade e da fraternidade, ou a cultura da indiferença: cada um se desembarace como puder.

Não podemos resignar-nos a ver seres humanos tratados como mercadoria de troca, encarcerados e torturados de maneira atroz – sabemos que, muitas vezes, quando os mandamos embora, o seu destino é a tortura e a prisão; não podemos mais assistir às tragédias dos naufrágios, devido a tráficos odiosos e ao fanatismo da indiferença. A indiferença torna-se fanática. As pessoas que correm o risco de se afogar, quando são abandonadas no meio das ondas, devem ser socorridas. É um dever de humanidade, é um dever de civilização!

O Céu abençoar-nos-á se soubermos, em terra e no mar, cuidar dos mais frágeis, se soubermos superar a paralisia do medo e o desinteresse que condena à morte com luvas de veludo. E nós, representantes de diversas religiões, somos chamados a ser exemplo nisto. Com efeito, Deus abençoou o pai Abraão. Foi chamado a deixar a sua terra de origem e «partiu sem saber para onde ia» (Heb 11, 8). Hóspede e peregrino em terra estrangeira, acolheu os viajantes que passaram junto da sua tenda (cf. Gen 18): «exilado da sua pátria, sem uma casa, foi ele próprio casa e pátria de todos» (S. Pedro Crisólogo, Discursos, 121). E «como recompensa da sua hospitalidade, obteve a graça de ter uma descendência» (S. Ambrósio de Milão, De officiis, II, 21). Portanto, na raiz dos três monoteísmos mediterrânicos, temos o acolhimento, o amor pelo estrangeiro em nome de Deus. Isto é vital se, como o nosso pai Abraão, sonharmos um futuro próspero. Não esqueçamos o refrão da Bíblia: “o órfão, a viúva e o migrante, o estrangeiro”. Órfão, viúva e estrangeiro: são estes quem Deus nos manda proteger.

Por conseguinte nós, crentes, devemos ser modelo de acolhimento recíproco e fraterno. Muitas vezes não são fáceis as relações entre os grupos religiosos, com a traça do extremismo e a peste ideológica do fundamentalismo que corroem a vida real das comunidades. A este respeito, porém, quero repetir o que escreveu um homem de Deus que viveu não longe daqui: «Ninguém guarde, no seu coração, sentimentos de ódio contra o seu próximo, mas sentimentos de amor, porque quem odeia inclusive um só homem não poderá estar tranquilo diante de Deus. Deus não escuta a sua oração, enquanto guardar cólera no seu coração» (S. Cesário de Arles, Discursos, XIV, 2).

Hoje também Marselha, caraterizada por um variegado pluralismo religioso, tem pela frente uma encruzilhada: encontro ou confronto. E agradeço a todos vós que optastes pela via do encontro: obrigado pelo vosso empenhamento solidário e concreto na promoção humana e na integração. Marselha é um modelo de integração. É bom que aqui, juntamente com as diversas realidades que trabalham com os migrantes, exista o Marseille-Espérance, um organismo de diálogo inter-religioso que promove a fraternidade e a convivência pacífica. Olhemos para os pioneiros e testemunhas do diálogo, como Jules Isaac, que viveu aqui nas proximidades e cujo sexagésimo aniversário de morte foi recentemente recordado. Vós sois a Marselha do futuro. Continuai sem desanimar, para que esta cidade seja um mosaico de esperança para a França, a Europa e o mundo.

Como voto final, quero citar algumas palavras que David Sassoli pronunciou em Bari, por ocasião dum Encontro anterior sobre o Mediterrâneo: «Em Bagdad, na Casa da Sabedoria do Califa Al Ma'mun, encontravam-se judeus, cristãos e muçulmanos para ler os livros sagrados e os filósofos gregos. Hoje todos, crentes e laicos, sentimos a necessidade de reedificar aquela Casa para continuarmos, juntos, a combater os ídolos, derrubar muros, construir pontes, dar corpo a um novo humanismo. Olhar em profundidade o nosso tempo e amá-lo ainda mais quando é difícil de amar, creio que seja a semente lançada nestes dias em que nos debruçamos sobre o nosso destino. Cesse o medo dos problemas que o Mediterrâneo nos apresenta! (...) Para a União Europeia e para todos nós, está em jogo a nossa sobrevivência» (Discurso por ocasião do Encontro de reflexão e espiritualidade «Mediterrâneo fronteira de paz», 22/II/2020).

Irmãos, irmãs, enfrentemos, unidos, os problemas, não façamos naufragar a esperança, juntos componhamos um mosaico de paz!

Fico contente por ver aqui tantos de vós que ides ao mar para salvar, para socorrer os migrantes. E muitas vezes sois impedidos de ir, porque – dizem – o navio tem falta de alguma coisa, falta isto, falta aquilo... São gestos de ódio contra o irmão, disfarçados de “equilíbrio”. Obrigado por tudo aquilo que fazeis.


Sábado, 23 de setembro

Sessão conclusiva dos “Rencontres Méditerranéennes” no “Palais du Pharo

Senhor Presidente da República,
Amados irmãos Bispos,
Ilustres Autarcas e autoridades que representais cidades e territórios banhados pelo Mar Mediterrâneo,
Todos vós, amigas e amigos!

Saúdo-vos cordialmente, agradecido a cada um de vós por ter acolhido o convite do Cardeal Aveline para participar nestes encontros. Obrigado pelo vosso trabalho e as valiosas reflexões que compartilhastes. Depois de Bari e Florença, prossegue o caminho ao serviço dos povos mediterrânicos: também aqui estão juntos responsáveis eclesiásticos e civis, não para tratar de interesses recíprocos, mas animados pelo desejo de cuidar do homem. Obrigado por o fazerdes com os jovens, presente e futuro da Igreja e da sociedade.

A cidade de Marselha é muito antiga. Fundada por navegadores gregos vindos da Ásia Menor, o mito fá-la remontar à história de amor entre um marinheiro emigrante e uma princesa nativa. Desde as suas origens, apresenta um caráter compósito e cosmopolita: acolhe as riquezas do mar e dá uma pátria a quem já não a tem. Marselha diz-nos que, apesar das dificuldades, a convivência é possível e geradora de alegria. No mapa, entre Niza e Montpellier, parece quase desenhar-se um sorriso; e assim me apraz pensá-la: Marselha é «o sorriso do Mediterrâneo». Quero, pois, propor-vos algumas reflexões sobre três realidades que caraterizam Marselha: o mar, o porto e o farol. São três símbolos.

1. O mar. Uma maré de povos fez desta cidade um mosaico de esperança, com a sua grande tradição multiétnica e multicultural, representada pelos mais de 60 Consulados presentes no seu território. Marselha é cidade simultaneamente plural e singular, pois é a sua pluralidade, fruto de encontro com o mundo, que torna singular a sua história. Hoje, frequentemente, ouve-se repetir que a história mediterrânica seria um enredo de conflitos entre civilizações, religiões e pontos de vista diferentes. Não ignoramos os problemas – eles existem! –, mas não nos deixemos enganar: os intercâmbios entre os povos tornaram o Mediterrâneo berço de civilizações, mar transbordante de tesouros, a tal ponto que o mesmo – como escreveu um grande historiador francês – não é «uma paisagem, mas inumeráveis paisagens. Não é um mar, mas uma sucessão de mares; (…) desde há milénios que tudo conflui para ele, complicando e enriquecendo a sua história» (F. Braudel, La Méditerranée, Paris 1985, 16). O mare nostrum é espaço de encontro: entre as religiões abraâmicas, entre o pensamento grego, latino e árabe, entre a ciência, a filosofia e o direito, e entre muitas outras realidades. Transmitiu ao mundo o valor sublime do ser humano, dotado de liberdade, aberto à verdade e carecido de salvação, que vê o mundo como uma maravilha a descobrir e um jardim a habitar, sob o signo de um Deus que estabelece alianças com os homens.

Um grande autarca lia, no Mediterrâneo, não uma questão conflitual, mas uma resposta de paz; mais, «o início e o fundamento da paz entre todas as nações do mundo» (G. La Pira, Palavras na conclusão do I Colóquio do Mediterrâneo, 06/X/1958). Antes, tinha ele dito: «A resposta (…) é possível, se se considera a vocação histórica comum e, por assim dizer, permanente que a Providência atribuiu no passado, atribui no presente e, em certo sentido, atribuirá no futuro aos povos e nações que vivem nas margens deste misterioso lago de Tiberíades alargado que é o Mediterrâneo» (Discurso de abertura do I Colóquio do Mediterrâneo, 03/X/1958). Lago de Tiberíades ou Mar da Galileia, isto é, um lugar onde se concentrava, na época de Cristo, uma grande variedade de populações, cultos e tradições. Foi lá precisamente, na «Galileia dos gentios» (cf. Mt 4, 15), atravessada pela Via do Mar, que se desenrolou a maior parte da vida pública de Jesus. Um contexto multiforme e, sob vários aspetos, instável foi o local do anúncio universal das Bem-aventuranças, em nome de um Deus, Pai de todos, que «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os injustos» (Mt 5, 45). E era também o convite a alargar as fronteiras do coração, superando barreiras étnicas e culturais. Eis, pois, a resposta que nos vem do Mediterrâneo: este perene mar da Galileia convida a contrapor, à divisão dos conflitos, a «convivência das diferenças» (T. Bello, Benedette inquietudini, Milão 2001, 73). O mare nostrum, na encruzilhada entre Norte e Sul, entre Este e Oeste, concentra os desafios do mundo inteiro, como testemunham as suas «cinco margens», sobre as quais refletistes: Norte de África, Médio Oriente, Mar Negro-Egeu, Balcãs e Europa latina. Está na primeira-linha de desafios que afetam a todos: pensemos no desafio climático, com o Mediterrâneo a representar um ponto crítico onde as mudanças se notam mais rapidamente. Como é importante salvaguardar a floresta mediterrânea, um tesouro único de biodiversidade! Em suma, este mar, ambiente que oferece uma abordagem única da complexidade, é «espelho do mundo» e traz em si uma vocação global à fraternidade, vocação ímpar e única via para prevenir e superar a conflitualidade.

Irmãos e irmãs, no mar dos conflitos de hoje, estamos aqui a fim de valorizar a contribuição do Mediterrâneo, para que volte a ser laboratório de paz. Pois esta é a vocação: ser lugar onde países e realidades diferentes se encontrem com base na humanidade que todos partilhamos, e não nas ideologias que nos contrapõem. É verdade que o Mediterrâneo exprime um pensamento que não é uniforme e ideológico, mas poliédrico e aderente à realidade; um pensamento vital, aberto e conciliador: um pensamento comunitário, esta é a palavra. Quanto necessitamos dele no momento atual, quando nacionalismos antiquados e belicosos querem fazer cair o sonho da comunidade das nações! Mas lembremo-nos de que, com as armas, se faz a guerra, não a paz; e com a ganância de poder volta-se sempre ao passado, não se constrói o futuro.

Donde começar, então, para radicar a paz? Nas margens do Mar da Galileia, Jesus começou por dar esperança aos pobres, proclamando-os bem-aventurados: atendeu às suas necessidades, curou as suas feridas e, antes de tudo, proclamou-lhes a boa nova do Reino. É preciso recomeçar daqui: do grito muitas vezes silencioso dos últimos, e não dos primeiros da turma que, apesar de estarem bem, levantam a voz. Recomecemos, Igreja e comunidade civil, da escuta dos pobres que «se abraçam, não se contam» (P. Mazzolari, A palavra aos pobres, Bolonha 2016, 39), porque são rostos, não números. A mudança de ritmo das nossas comunidades consiste em tratá-los como irmãos, cujas histórias devemos conhecer, e não como problemas molestos, expulsando-os, mandando-os para casa; consiste em acolhê-los, não em escondê-los; em integrá-los, não em desembaraçar-se deles; em dar-lhes dignidade. E Marselha, quero repeti-lo, é a capital da integração dos povos. Este é um orgulho para vós! Hoje o mar da convivência humana está poluído pela precariedade, que fere também esta esplêndida Marselha. E onde há precariedade, há criminalidade: onde há pobreza material, educativa, laboral, cultural e religiosa, encontram terreno propício as máfias e os tráficos ilícitos. O mero empenho das instituições não basta; é preciso um sobressalto de consciência para dizer «não» à ilegalidade e «sim» à solidariedade, que não é uma gota no mar, mas o elemento indispensável para purificar as suas águas.

Com efeito, o verdadeiro mal social não é tanto o crescimento dos problemas, como sobretudo a diminuição do cuidado que se lhes presta. Hoje, quem se faz próximo dos jovens abandonados a si mesmos, presa fácil da criminalidade e da prostituição? Quem se responsabiliza por eles? Quem se faz próximo das pessoas escravizadas por um trabalho que deveria torná-las mais livres? Quem cuida das famílias amedrontadas, com medo do futuro e de trazer ao mundo novas criaturas? Quem presta ouvidos ao gemido dos idosos abandonados que, em vez de ser valorizados, acabam estacionados, com a perspetiva falsamente dignificante duma morte doce, quando na realidade é mais salgada que as águas do mar? Quem pensa nos bebés não nascidos, recusados em nome dum falso direito ao progresso, que é, ao contrário, um retrocesso nas necessidades do indivíduo? Hoje temos o drama de se confundirem as crianças com os cachorrinhos. O meu secretário contava-me que, ao passar pela Praça de São Pedro, tinha visto uma senhora que traria bebés no carrinho... mas não eram bebés, eram cachorrinhos! Esta confusão fala-nos de algo que não está bem. Quem olha com compaixão para além da própria margem a fim de ouvir os gritos de dor que se levantam do Norte de África e do Médio Oriente? Quanta gente vive imersa em violências e padece situações de injustiça e perseguição! Penso em tantos cristãos, muitas vezes obrigados a abandonar as suas terras ou a habitá-las sem ver reconhecidos os seus direitos, sem gozar de plena cidadania. Por favor, empenhemo-nos para que quantos fazem parte da sociedade possam tornar-se cidadãos de pleno direito. E depois há um grito de dor que ressoa mais do que qualquer outro e está a transformar o mare nostrum em mare mortuum, a mudar o Mediterrâneo de berço da civilização em túmulo da dignidade. É o grito sufocado dos irmãos e irmãs migrantes, sobre o qual quero agora debruçar-me ao refletir sobre a segunda imagem que nos oferece Marselha: o seu porto.

2. O porto de Marselha é, há séculos, uma porta aberta para o mar, para a França e para a Europa. Daqui muitos partiram para encontrar trabalho e futuro no estrangeiro, e daqui muitos cruzaram a porta do continente com bagagens cheias de esperança. Marselha tem um grande porto e é uma grande porta, que não pode ser fechada. E, no entanto, fecharam-se vários portos do Mediterrâneo. E ressoaram duas palavras, alimentando os temores das pessoas: «invasão» e «emergência». E fecham-se os portos. Mas, quem arrisca a vida no mar não invade, procura acolhimento, procura vida. Quanto à emergência, o fenómeno migratório não é tanto uma emergência momentânea, sempre boa para difundir propaganda alarmista, como sobretudo um dado real dos nossos tempos, um processo que envolve em torno do Mediterrâneo três continentes e que deve ser governado com sábia clarividência: com uma responsabilidade europeia capaz de enfrentar as dificuldades objetivas. Estou a olhar, aqui, neste mapa os portos privilegiados para os migrantes: Chipre, Grécia, Malta, Itália e Espanha… Encontram-sevoltados para o Mediterrâneo e recebem migrantes. O mare nostrum clama por justiça, com as suas margens que dum lado transudam opulência, consumismo e desperdício, enquanto do outro há pobreza e precariedade. Também aqui o Mediterrâneo espelha o mundo, com o Sul que faz apelo ao Norte: tantos países em vias de desenvolvimento, atribulados por instabilidade, regimes, guerras e desertificação, que olham para os países que estão bem, num mundo globalizado onde estamos todos conectados, mas onde os desníveis nunca foram tão acentuados. E, todavia, esta situação não é uma novidade dos últimos anos, nem este Papa vindo da outra parte do mundo é o primeiro a senti-la com urgência e preocupação. A Igreja fala disto com tons vivos há mais de cinquenta anos.

Tinha terminado há pouco o Concílio Vaticano II, quando São Paulo VI escreveu, na Encíclica Populorum progressio: «Os povos da fome dirigem-se, hoje, de modo dramático aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão» (n. 3). O Papa Montini enumerou «três deveres» das nações mais desenvolvidas, enraizados «na fraternidade humana e sobrenatural»: o «dever de solidariedade, ou seja, o auxílio que as nações ricas devem prestar aos países em vias de desenvolvimento; o dever de justiça social, isto é, a retificação das relações comerciais defeituosas, entre povos fortes e povos fracos; o dever de caridade universal, quer dizer, a promoção, para todos, de um mundo mais humano e todos tenham qualquer coisa a dar e a receber, sem que o progresso de uns seja obstáculo ao desenvolvimento dos outros» (n. 44). À luz do Evangelho e destas considerações, em 1967, Paulo VI sublinhou o «dever do acolhimento», sobre o qual – escrevia ele – nunca «é demasiado insistir» (n. 67). A isto mesmo havia encorajado Pio XII, quinze anos antes, escrevendo que «a Família de Nazaré no exílio, Jesus, Maria e José, emigrantes no Egito, (…) são o modelo, o exemplo e o sustentáculo de todos os emigrantes e peregrinos das mais diversas idades e países, de todos os refugiados de qualquer condição que, forçados pela perseguição ou pela necessidade, se veem obrigados a abandonar a pátria, os entes queridos, (...) e partir para uma terra estrangeira» (Const. ap. Exsul Familia de spirituali emigrantium cura, 01/VIII/1952).

É certo que estão à vista de todos as dificuldades em acolher. Os migrantes devem ser acolhidos, protegidos ou acompanhados, promovidos e integrados. Se isto não for feito na sua inteireza, o migrante acaba por ficar na órbita da sociedade. Acolhido, acompanhado, promovido e integrado: este é o estilo. É verdade que não é fácil assumir este estilo ou integrar pessoas não esperadas; porém, o critério principal não pode ser a manutenção do próprio bem-estar, mas a salvaguarda da dignidade humana. Aqueles que se refugiam junto de nós não devem ser vistos como um peso a carregar: se os considerarmos irmãos, aparecer-nos-ão sobretudo como dons. Amanhã celebrar-se-á o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Deixemo-nos tocar pela história de tantos nossos irmãos e irmãs em dificuldade, que têm o direito seja de emigrar seja de não emigrar, e não nos fechemos na indiferença. A história chama-nos a um sobressalto de consciência para prevenir o naufrágio de civilização. Com efeito, o futuro não há de estar no fechamento, que é um regresso ao passado, uma inversão de marcha no caminho da história. Contra a terrível chaga da exploração de seres humanos, a solução não é rejeitar, mas assegurar, segundo as possibilidades de cada qual, um largo número de entradas legais e regulares, sustentáveis graças a um acolhimento équo por parte do continente europeu, no contexto duma colaboração com os países de origem. Pelo contrário, dizer «basta» é fechar os olhos; tentar agora «salvar-se a si mesmo» transformar-se-á em tragédia amanhã. É que as gerações futuras agradecer-nos-ão se tivermos conseguido criar as condições para uma imprescindível integração, mas culpar-nos-ão se tivermos apenas favorecido estéreis assimilações. A integração, inclusive dos migrantes, é fadigosa, mas clarividente: prepara o futuro que, quer queiramos quer não, ou será juntos ou não existirá; ao passo que a assimilação, que não tem em conta as diferenças e permanece rígida nos próprios paradigmas, faz com que a ideia prevaleça sobre a realidade e compromete o futuro, aumentando as distâncias e gerando a formação de guetos, que fazem crescer hostilidades e impaciências. Precisamos de fraternidade como do pão. A própria palavra «irmão», na sua derivação indo-europeia, mostra uma raiz ligada à nutrição e ao sustento. Só nos sustentaremos a nós mesmos, nutrindo de esperança os mais frágeis, acolhendo-os como irmãos. «Não vos esqueçais da hospitalidade» (Heb 13, 2), diz-nos a Sagrada Escritura. E no Antigo Testamento repete-se: a viúva, o órfão e o estrangeiro. Os três deveres da caridade: assistir a viúva, assistir o órfão e assistir o estrangeiro, o migrante.

Neste sentido, o porto de Marselha é também uma «porta de fé». Segundo a tradição, aqui desembarcaram os Santos Marta, Maria e Lázaro que semearam o Evangelho nestas terras. A fé vem do mar, como recorda a sugestiva tradição marselhesa da Candelária com a procissão marítima. No Evangelho, Lázaro é o amigo de Jesus, mas é também o nome do protagonista duma sua parábola muito atual, abrindo-nos os olhos para a desigualdade que corrói a fraternidade e falando-nos da predileção do Senhor pelos pobres. Pois bem, nós cristãos que acreditamos em Deus feito homem, naquele Homem único e inimitável que nas margens do Mediterrâneo se apresentou como caminho, verdade e vida (cf. Jo 14, 6), não podemos aceitar que os caminhos do encontro sejam fechados. Por favor, não fechemos os caminhos do encontro! Não podemos aceitar que a verdade do deus-dinheiro prevaleça sobre a dignidade do homem, que a vida se transforme em morte! A Igreja, ao confessar que Deus em Jesus Cristo «Se uniu de certo modo a cada homem» (Gaudium et spes, 22), acredita, com São João Paulo II, que o caminho dela é o homem (cf. Carta enc. Redemptor hominis, 14). Adora a Deus e serve os mais frágeis, que são os seus tesouros. Adorar a Deus e servir os outros é o que conta: não a relevância social ou a consistência numérica, mas a fidelidade ao Senhor e ao homem.

Trata-se dum testemunho cristão, frequentemente heroico; penso, por exemplo, em São Carlos de Foucauld, «irmão universal», nos mártires da Argélia, mas também em tantos agentes de caridade de hoje. Neste estilo de vida escandalosamente evangélico, a Igreja encontra o porto seguro onde atracar e donde partir novamente para tecer laços com a população de cada povo, procurando em toda a parte os vestígios do Espírito e oferecendo o que gratuitamente recebeu. Aqui está a realidade mais pura da Igreja, aqui está – escreveu Bernanos – «a Igreja dos santos», acrescentando que «todo este grande aparato de sabedoria, força, disciplina elástica, magnificência e majestade, de por si nada é se a caridade não o animar» (Jeanne relapse et sainte, Paris 1994, 74). Apraz-me exaltar esta perspicácia francesa, génio crente e criativo, que afirmou tais verdades através duma infinidade de gestos e escritos. São Cesário de Arles dizia: «Se tens a caridade, tens Deus; e se tens Deus, que te falta?» (Sermão 22, 2). Pascal reconhecia que «o único objeto da Escritura é a caridade» (Pensamentos, n. 301) e que «a verdade fora da caridade não é Deus, mas é a sua silhueta e um ídolo que não deve ser amado nem adorado» (Pensamentos, n. 767). E São João Cassiano, aqui falecido, escreveu que «tudo, mesmo aquilo que se considera útil e necessário, vale menos do que aquele bem que é a paz e a caridade» (Conferências espirituais XVI, 6).

Por isso é bom que os cristãos sejam insuperáveis na caridade; e o Evangelho da caridade seja a magna charta da pastoral. Não somos chamados a chorar os tempos passados nem a redefinir uma relevância eclesial, somos chamados ao testemunho: não a bordar as palavras do Evangelho, mas a dar-lhes carne; não a medir a visibilidade, mas a gastarmo-nos na gratuidade, acreditando que «a medida de Jesus é o amor sem medida» (Francisco, Homilia, 23/II/2020). São Paulo, o Apóstolo dos gentios, que passou boa parte da sua vida dum porto para outro nas rotas do Mediterrâneo, ensinava que, para cumprir a lei de Cristo, é preciso carregar os fardos uns dos outros (cf. Gal 6, 2). Queridos irmãos Bispos, não sobrecarreguemos as pessoas, mas aliviemos as suas fadigas em nome do Evangelho da misericórdia, para distribuir com alegria o alívio de Jesus a uma humanidade cansada e ferida. Que a Igreja não seja um conjunto de preceitos; a Igreja seja porto de esperança para os desanimados. Por favor, ampliai o coração! A Igreja seja porto de restabelecimento, onde as pessoas se sintam encorajadas a fazerem-se ao largo na vida com a força incomparável da alegria de Cristo. Que a Igreja não seja uma alfândega. Recordemos o Senhor: todos, todos, todos são convidados.

3. E chego assim à última imagem: o farol. Este ilumina o mar e indica o porto. Que rastos luminosos podem orientar a rota das Igrejas no Mediterrâneo? Pensando no mar, que une tantas comunidades crentes diversas, creio que se possa refletir sobre percursos de maior sinergia, talvez avaliando mesmo a oportunidade duma Conferência eclesial do Mediterrâneo, como disse o Cardeal [Aveline], que permita novas possibilidades de intercâmbio e dê maior representatividade eclesial à região. E pensando ainda no porto e na questão migratória, poderia ser proveitoso trabalhar em prol duma pastoral específica ainda mais conectada, de modo que as dioceses mais expostas pudessem assegurar melhor assistência espiritual e humana às irmãs e aos irmãos que chegam necessitados de tudo.

O farol, neste prestigioso palácio que tem o seu nome, faz-me pensar ainda e sobretudo nos jovens: são eles a luz que indica a rota futura. Marselha é uma grande cidade universitária, sede de quatro campus; dos 35 mil alunos que os frequentam, aproximadamente 5 mil são estrangeiros. Donde começar a tecer as relações entre as culturas, senão das universidades? Aqui os jovens são fascinados, não pela sedução do poder, mas pelo sonho de construir o futuro. Que as universidades mediterrânicas sejam laboratórios de sonhos e estaleiros de construção de futuro, onde os jovens amadureçam encontrando-se, conhecendo-se e descobrindo culturas e contextos simultaneamente vizinhos e diversos. Assim se abatem os preconceitos, curam as feridas e evitam retóricas fundamentalistas. Cuidado com a pregação de tantos fundamentalismos que, hoje em dia, estão na moda! Jovens bem formados e orientados para fraternizar poderão abrir portas inesperadas de diálogo. Se queremos que se consagrem ao Evangelho e ao nobre serviço da política, é preciso antes de tudo que nós próprios sejamos credíveis: esquecidos de nós mesmos, livres de autorreferencialidade, dedicados a gastar-nos incansavelmente pelos outros. Mas o desafio prioritário da educação diz respeito a todas as idades educativas: já desde criança, «misturando-se» com as outras, podem-se superar muitas barreiras e preconceitos, desenvolvendo a própria identidade no contexto dum enriquecimento mútuo. Para isso bem pode contribuir a Igreja, colocando ao serviço as suas redes de formação e dando vida a uma «criatividade da fraternidade».

Irmãos e irmãs, um outro desafio é o de uma teologia mediterrânica – a teologia deve estar radicada na vida; uma teologia de laboratório não funciona –, que desenvolva um pensamento aderente à realidade, «casa» do humano e não apenas do dado técnico, capaz de unir as gerações ligando memória e futuro, e de promover com originalidade o caminho ecuménico entre os cristãos e o diálogo entre crentes de diferentes religiões. É bom aventurar-se numa investigação filosófica e teológica que, bebendo nas fontes culturais mediterrânicas, restitua esperança ao homem, mistério de liberdade, que tem necessidade de Deus e do outro para dar sentido à sua existência. E é preciso também refletir sobre o mistério de Deus, que ninguém pode pretender possuir ou dominar, antes deve ser subtraído a todo o uso violento e instrumental, cientes de que a confissão da sua grandeza pressupõe em nós a humildade dos indagadores.

Queridos irmãos e irmãs,estou feliz por estar aqui em Marselha! Uma vez, o Senhor Presidente convidou-me a visitar a França e disse-me: “Mas é importante que venha a Marselha!”. E aqui estou. Agradeço-vos pela vossa escuta paciente e o vosso compromisso. Continuai para diante, com coragem! Sede mar de bem, para fazer frente às pobrezas de hoje com uma sinergia solidária; sede porto acolhedor, para abraçar quem procura um futuro melhor; sede farol de paz, para atravessar, através da cultura do encontro, os tenebrosos abismos da violência e da guerra. Muito obrigado!


Santa Missa no “Stadio Vélodrome

Narram as Escrituras que o rei David, depois de tornar estável o seu reino, decidiu transportar a Arca da Aliança para Jerusalém. Então, depois de ter convocado o povo, levantou-se e partiu para ir buscá-la; em seguida, durante o trajeto, ele mesmo dançava diante dela juntamente com o povo, exultando de alegria pela presença do Senhor (cf. 2 Sam 6, 1-15). Tendo como pano de fundo esta cena, o evangelista Lucas conta-nos a visita de Maria à prima Isabel: de facto, também Maria se levanta e parte para a região de Jerusalém e, quando entra na casa de Isabel, o menino que esta traz no ventre, reconhecendo a chegada do Messias, salta de alegria e põe-se a dançar como fez David diante da Arca (cf. Lc 1, 39-45).

Assim, Maria é apresentada como a verdadeira Arca da Aliança, que introduz no mundo o Senhor encarnado. É a jovem Virgem que vai ao encontro da idosa estéril e, levando Jesus, torna-se sinal da visita de Deus que vence toda a esterilidade. É a Mãe que sobe rumo aos montes de Judá, para nos dizer que Deus Se põe em viagem para vir ao nosso encontro, para nos procurar com o seu amor e fazer-nos exultar de alegria. É Deus, quem Se põe em viagem!

Nestas duas mulheres, Maria e Isabel, desvenda-se a visita de Deus à humanidade: uma é jovem e a outra idosa, uma é virgem e a outra estéril; e, contudo, ambas estão grávidas de modo «impossível». Esta é a obra de Deus na nossa vida: torna possível mesmo aquilo que parece impossível, gera vida mesmo na esterilidade.

Irmãos e irmãs, perguntemo-nos de coração sincero: Acreditamos que Deus está a agir na nossa vida? Cremos que o Senhor age, de forma escondida e frequentemente imprevisível, na história, realiza maravilhas e atua também nas nossas sociedades marcadas pelo secularismo mundano e por uma certa indiferença religiosa?

Há um modo de discernir se temos ou não esta confiança no Senhor. E qual é esse modo? Diz o Evangelho que, «quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o menino saltou-lhe de alegria no seio» (1, 41). Este é o sinal: saltar de alegria. Quem crê, quem reza, quem acolhe o Senhor salta de alegria no Espírito, sente que algo se move por dentro, «dança» de alegria. Quero deter-me nisto: o salto de alegria da fé.

A experiência da fé gera, antes de mais nada, um salto de alegria perante a vida. Saltar de alegria significa ser «tocado por dentro», ter um frémito interior, sentir que algo se move no nosso coração. É o contrário dum coração insensível, frio, acomodado numa vida tranquila, que se tranca na indiferença e se torna impermeável, que endurece, insensível a tudo e a todos, inclusive ao trágico descarte da vida humana, que hoje é rejeitada em tantas pessoas que emigram, bem como em muitos bebés não nascidos e em muitos idosos abandonados. Um coração frio e insensível arrasta a vida de forma mecânica, sem paixão, sem impulsos, sem anseios. E, de tudo isto, é possível adoecer na nossa sociedade europeia: o cinismo, o desencanto, a resignação, a incerteza, a melancolia – tudo somado, a tristeza, aquela tristeza escondida nos corações. Alguém as designou como «paixões tristes»: é uma vida sem saltos de alegria.

Ao contrário, quem é gerado para a fé, reconhece a presença do Senhor, como o bebé no ventre de Isabel. Reconhece a sua obra no desabrochar dos dias e recebe olhos novos para ver a realidade; mesmo no meio das canseiras, dos problemas e dos sofrimentos, vislumbra diariamente a visita de Deus e sente-se acompanhado e sustentado por Ele. Diante do mistério da vida pessoal e dos desafios da sociedade, quem acredita dá saltos de alegria, tem uma paixão, um sonho a cultivar, um interesse que o impele a comprometer-se pessoalmente. Agora, cada um de nós pode perguntar-se: eu sinto estas coisas? Eu tenho estas coisas? Quem é assim sabe que, em tudo, está presente o Senhor, nos chama e convida a testemunhar o Evangelho para construir com mansidão, graças aos dons e carismas recebidos, um mundo novo.

A experiência da fé, além de um salto de alegria perante a vida, gera também um salto de alegria à vista do próximo. De facto, no mistério da Visitação, vemos que a visita de Deus não se realiza através de eventos celestes extraordinários, mas na simplicidade dum encontro. Deus chega à porta duma casa de família, no abraço terno entre duas mulheres, no cruzamento de duas gravidezes cheias de maravilha e esperança. E, neste encontro, temos a solicitude de Maria, a maravilha de Isabel, a alegria da partilha.

Recordemo-lo sempre, mesmo na Igreja: Deus é relação e visita-nos muitas vezes através dos encontros humanos, quando sabemos abrir-nos ao outro, quando há um salto de alegria pela vida de quem passa diariamente por nós e quando o nosso coração não fica impassível e insensível perante as feridas de quem é mais frágil. Neste sentido, as nossas cidades metropolitanas e muitos países europeus como a França, onde convivem diferentes culturas e religiões, são um grande desafio contra as exasperações do individualismo, contra os egoísmos e os fechamentos que produzem solidões e sofrimentos. Aprendamos de Jesus a sentir frémitos por quem vive ao nosso lado, aprendamos d’Ele que, à vista das multidões cansadas e exaustas, sente compaixão e Se comove (cf. Mc 6, 34), experimenta saltos de misericórdia diante da carne ferida daqueles que encontra. Como afirma um vosso grande Santo – Vicente de Paulo – «é preciso procurar enternecer os nossos corações, tornando-os sensíveis às penas e às misérias do próximo, e pedir a Deus que nos dê o verdadeiro espírito de misericórdia, que é precisamente o seu próprio espírito», até reconhecer que os pobres são «os nossos senhores e patrões» (Correspondance, entretiens, documents, Paris 1920-25, 341; 392-393).

Irmãos, irmãs, penso nos muitos «saltos de alegria» da França, numa história rica de santidade, de cultura, de artistas e de pensadores, que apaixonou tantas gerações. Também hoje a nossa vida, a vida da Igreja, a França, a Europa precisam disto: da graça dum salto de alegria, dum novo salto de fé, de caridade e de esperança. Precisamos de reencontrar paixão e entusiasmo, redescobrir o gosto do compromisso pela fraternidade, ousar ainda o risco do amor nas famílias e para com os mais frágeis, e encontrar no Evangelho uma graça que transforma e torna bela a vida.

Olhemos para Maria, que se desinquieta pondo-se em viagem e nos ensina que assim é exatamente Deus: desinquieta-nos, põe-nos em movimento, faz-nos «saltar de alegria», como acontece a Isabel. E queremos ser cristãos que encontram Deus com a oração, e os irmãos com o amor; cristãos que saltam de alegria, vibram, acolhem o fogo do Espírito para depois se deixar queimar pelos interrogativos de hoje, pelos desafios do Mediterrâneo, pelo grito dos pobres, pelas «santas utopias» de fraternidade e de paz à espera de ser realizadas.

Irmãos e irmãs, juntamente convosco peço a Notre Dame de la Garde que vele pela vossa vida, guarde a França, proteja a Europa inteira e nos faça saltar de alegria no Espírito. E quero fazê-lo com as palavras de Paul Claudel: «Vejo a igreja aberta. (…) / Não tenho nada para oferecer, e nada a pedir. / Venho, Mãe, somente para Te ver. / Ver-Te, chorar de felicidade, saber isto: / que sou teu filho e que Tu estás aqui. (…) Estar contigo, Maria, neste lugar onde Tu estás. (…) / Porque Tu sempre estás, / simplesmente porque és Maria, / simplesmente porque existes, / Mãe de Jesus Cristo, o meu agradecimento!» («La Vierge à midi», Poëmes de Guerre 1914-1916, Paris 1922).

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