O processo de canonização de S. Josemaria

Constantino Ánchel, doutor em Teologia e investigador do Centro de Estudos Josemaria Escrivá, narra neste episódio de “Fragmentos de História” o processo de canonização de S. Josemaria e apresenta detalhes sobre as diferentes etapas que atravessou, assim como alguns milagres e favores obtidos por milhares de pessoas através da intercessão do fundador do Opus Dei.

Sumário do podcast de Constantino Ánchel, doutor em Teologia e investigador do Centro de Estudos Josemaria Escrivá:


🎙 Link para os restantes artigos da série: “Fragmentos de história, um podcast sobre o Opus Dei e a vida de S. Josemaria”


O objetivo deste podcast é conhecer por dentro alguns aspetos fundamentais da canonização de S. Josemaria.

Em 26 de junho de 1975, Deus chamou à sua presença Josemaria Escrivá. Desde esse mesmo dia, muitos fiéis cristãos tiveram a convicção de que Deus tinha premiado a sua vida santa e gozava já da bem-aventurança do Céu. Essa certeza apoiava-se no conhecimento da sua vida, na leitura e meditação dos seus escritos e no bem que Deus tinha realizado através do Opus Dei por ele fundado.

Imediatamente e de modo espontâneo, uma multidão começou a recorrer à sua intercessão junto de Deus, pedindo favores de todo o tipo. Surgiu também a possibilidade e o interesse em solicitar que se dessem os passos habituais para que a Igreja reconhecesse a sua santidade e o elevasse aos altares.

Primeiros passos do processo de canonização de Josemaria Escrivá

O Beato Álvaro del Portillo fez eco a esses desejos. Passados poucos dias, escreveu uma carta dirigida aos fiéis do Opus Dei, na qual contava detalhadamente os últimos dias do Fundador, o dia do seu falecimento e os comentários afetuosos de muitas pessoas sobre Josemaria Escrivá. Alguns destes comentários já consideravam, como razoável, iniciar os trabalhos que acabariam por reconhecer Josemaria como um novo intercessor no Céu.

Pouco depois, Álvaro del Portilho começou a dar forma a estas aspirações e, nos primeiros dias do mês de julho, tomou duas resoluções. Por um lado, pediu às pessoas da Obra que conservassem o material que tivessem disponível e que evidenciasse a santidade de vida de Josemaria Escrivá, pois seria imprescindível para facilitar um conhecimento realista e fundamentado do seu percurso. Por outro lado, começou a preparar a documentação necessária para uma futura causa de canonização.

Para dirigir todo este trabalho, criaram-se, nos diferentes países, uns gabinetes chamados Históricos que, junto com a Postulação da Causa, coordenassem estes trabalhos. Em concreto, em Madrid, os trabalhos começaram no dia 8 de julho de 1975 com a chegada do Pe. Benito Badrinas, nomeado Vice-Postulador. Em Roma foi nomeado postulador o Pe. Flavio Capucci.

Resultados imediatos

Graças à colaboração de muitas pessoas, nos primeiros cinco anos, os resultados foram frutíferos. Cerca de quatro mil pessoas escreveram relatos que continham as recordações dos seus encontros com S. Josemaria. Recolheram-se cerca de vinte mil cartas escritas à mão pelo Fundador. Várias centenas de bispos escreveram cartas Postulatórias, às quais há que acrescentar as de um grande número de pessoas de relevo na vida pública, civil e eclesiástica.

Nesse período de tempo, apareceram três esboços biográficos de S. Josemaria, escritos por Salvador Bernal, François Gondrand e Peter Berglar. Em 1983, Andrés Vázquez de Prada publicou outra biografia.

Para facilitar o recurso à sua intercessão, imprimiram-se várias centenas de milhares de pagelas e começaram a publicar-se Boletins Informativos que permitiam familiarizar-se com a figura de S. Josemaria e que chegaram a ter, nos dez primeiros anos, mais de dez milhões de assinantes, só em Espanha. Ao mesmo tempo, começaram a chegar à Postulação várias centenas de comunicações mensais de favores recebidos.

Diligências processuais prévias

Enquanto estes trabalhos decorriam, em Roma faziam-se diligências para propor o início da causa de canonização. Convém fazer aqui um comentário sobre a legislação da Santa Sé para levar a cabo as Causas de Canonização. Em 1969, S. Paulo VI modificou a legislação para agilizar os trabalhos processuais. Em concreto: reduziu-se a uma fase de instrução, isto é, a dos interrogatórios às testemunhas e estabeleceu-se que deviam passar pelo menos cinco anos desde o falecimento do candidato aos altares antes de iniciar uma causa.

Assim, tendo em conta a nova legislação, em 1980 e em conformidade com o prazo estabelecido pelas novas normas, quando passaram cinco anos do falecimento do fundador, o Opus Dei solicitou a introdução da Causa de Canonização. A petição foi apresentada na diocese de Roma, por ser nessa cidade que morreu Josemaria Escrivá.

A petição incluía à volta de seis mil cartas procedentes de mais de cem países, nas quais se pedia o início da Causa. Estas petições chamam-se Cartas Postulatórias, entre as quais havia muitas de Cardeais, arcebispos, bispos (mais de um terço do episcopado mundial) e superiores de ordens e congregações religiosas. Em conjunto entregou-se uma abundante documentação que incluía testemunhos pessoais, relações de favores, artigos de imprensa e publicações que mostravam a transcendência da vida de Josemaria Escrivá.

Introdução da Causa. Algumas reações

Após uma série de passos, a 19 de fevereiro de 1981, o Cardeal Poletti, Vigário de Roma, publicou o decreto de Introdução da Causa. A partir dessa época, Josemaria Escrivá recebeu o título de Servo de Deus.

Antes de continuar, queria falar de alguns comentários que saíram na imprensa motivados por este acontecimento. Referiam-se à rapidez com que se tinha procedido. Por trás dessas opiniões, havia o desconhecimento da nova legislação e, por isso, afirmavam que não se tinham respeitado os prazos.

Início da fase processual

Sem dar mais importância a esses comentários, a Postulação, tendo em conta que uma boa parte das testemunhas chamadas a declarar estavam em Espanha ou falavam espanhol, pediu que se constituísse, além do tribunal de Roma, outro em Madrid. Em 14 de março, a Congregação das Causas dos Santos aceitou esta petição.

No dia 12 de maio de 1981, teve lugar, em Roma, a abertura do processo romano presidida pelo Cardeal Poletti e, seis dias depois, em 18 de maio, o Cardeal Tarancón, arcebispo de Madrid, presidiu à abertura do processo madrileno.

Antes da abertura dos processos, a Postulação apresentou uma lista das possíveis testemunhas, explicando o motivo por que deviam ser chamadas a declarar. Estas tinham de cobrir toda a vida do Servo de Deus, os membros do Opus Dei chamados a declarar tinham de ser menos de quarenta por cento e havia que incluir as chamadas testemunhas contrárias, isto é, gente que tivesse conhecido e convivido com o Servo de Deus e que não estivesse de acordo com a sua possível elevação aos altares. A esta lista de testemunhas, a Congregação acrescentou algumas mais.

Antes da abertura do Processo, a Congregação elaborou o questionário a que deviam responder as testemunhas. Estes questionários têm duas partes: por um lado, a vida do Servo de Deus e por outro, como viveu as virtudes cristãs. Na elaboração destes questionários, a Congregação serviu-se da documentação apresentada pela Postulação que incluía também livros e publicações periódicas contrárias ao Fundador.

São constituídos os tribunais de Roma e Madrid

Sobre a constituição dos tribunais, a prática variava de uma diocese para outra, ainda que com o tempo se tenha ido unificando o modo de proceder. Em concreto, nessa época, na diocese de Roma, havia um único tribunal que recolhia as declarações de todas as causas que se realizavam nessa diocese e marcavam para cada causa um dia por semana para ouvir as testemunhas apresentadas pelo Postulador de cada Causa.

Em Madrid, o modo de proceder era outro. Na altura em que se instruiu o processo de Josemaria Escrivá, estavam em andamento outras quatro causas (de Pedro Poveda, da M. Maravillas de Jesus, do Padre Menni e de outro que não recordo). Para cada caso, o arcebispo de Madrid que era o juiz indicado para cada Causa, nomeava um tribunal diferente. No caso de Josemaria Escrivá, o juiz foi o Padre Rafael Pérez, agostinho, que tinha trabalhado na Congregação dos Santos em Roma. Era coadjuvado por dois juízes: um promotor da fé e um notário, que se encarregava das atas das sessões. Além disso, nomeavam-se suplentes para cada cargo que substituíam os titulares quando estes não podiam estar presentes. Evidentemente, nenhum dos membros do tribunal podia ser membro do Opus Dei: todos pertenciam ao clero secular, exceto o Padre Pérez e o Padre Manuel Garrido, beneditino.

As testemunhas chamadas a declarar foram cerca de uma centena, às que se juntaram duas ou três testemunhas novas, chamadas ex officio por cada um dos tribunais. As sessões, em Madrid, foram de segunda a sexta-feira durante três anos. Em Roma, uma por semana, durante um período de tempo um pouco mais longo.

No final, houve umas quantas sessões destinadas a integrar nas atas do processo documentos de diferente natureza, relativos a Josemaria Escrivá.

A Postulação recebe relatos de diversos favores

Enquanto os processos seguiam o seu curso, chegava à Postulação numerosa correspondência sobre a difusão da devoção ao Servo de Deus e sobre favores recebidos por sua intercessão. Em alguns destes relatos, havia indícios de ser uma graça que poderia qualificar-se como extraordinária.

Para beatificar uma pessoa, a Santa Sé pede que se certifique uma graça de carácter extraordinário, chamada milagre. Para isso, torna-se necessário um processo perante um tribunal canónico específico. Também pede o que, tecnicamente se chama fama de milagres. Quer dizer, que se possa certificar uma série de favores que poderiam, pela sua entidade, aproximar-se da qualificação de milagres. Isto, no caso dos favores médicos, pela pouca probabilidade de que a cura se deva a causas naturais. Para deixar bem documentada a fama de milagres, a Postulação entregou à Congregação dois volumes de 1200 páginas com a narrativa e a documentação de 20 curas extraordinárias que se atribuíam à sua intercessão, selecionadas de entre 36 que se encontram arquivadas juntamente com 75 000 relatos assinados, de favores de diversos tipos.

O milagre da beatificação de Josemaria

Entre os favores recebidos, houve um que chamou imediatamente a atenção dos médicos. Foi uma cura de um quadro médico complexo. Tratava-se de uma paciente, religiosa Carmelita da Caridade, residente em S. Lourenço do Escorial, em Madrid, a irmã Concepción Boullón Rubio.

A história é a seguinte: esta religiosa desde os começos dos anos setenta começou a sofrer uma série de incómodos que tinham causas múltiplas. Por um lado, começaram a surgir uns tumores em várias partes do corpo, mas, especialmente, um no ombro que lhe dificultava o descanso e o sono. Também lhe foi diagnosticada uma hérnia do hiato que causava uma úlcera que sangrava o que lhe produziu uma grave anemia, de tal maneira que, em 1976, o seu estado, segundo a terminologia médica, era de caquexia. Estava terrivelmente fraca, quase não saia do quarto, não tomava parte nas reuniões da Comunidade e a sua voz perdera a força de tal maneira que, para falar com a família pelo telefone, tinha de ser outra religiosa a falar por ela. Não se sabia a natureza dos tumores, pois os médicos não se atreviam a fazer uma biópsia dada a sua extrema debilidade.

O quadro clínico foi definido pelos médicos como uma lipocalcinogranulomatose tumoral com localizações múltiplas dolorosas e incapacitantes,com o volume máximo de uma laranja no ombro esquerdo. A esta doença se acrescentava uma patologia concomitante que se descreve nos seguintes termos: estado caquético em paciente com úlcera gástrica e hérnia do hiato complicada por uma grave anemia hipocrómica.

Neste estado de coisas, houve uma noite, em junho de 1976, que esteve tão mal que pensou que morria. Encomendou-se a Deus e, por fim, conciliou o sono. Na manhã seguinte, à hora de a Comunidade despertar, levantou-se para ir à casa de banho. Ao calçar os chinelos, notou que o de um pé lhe estava grande, pois o tumor que estava nesse lugar tinha desaparecido. Quando chegou à casa de banho, notou que o tumor do ombro também tinha desaparecido. Dirigiu-se à cama para ver se tinha rebentado e havia manchas nos lençóis, mas não viu nada. Como se sentiu bem, lavou-se, vestiu-se e juntou-se às orações matutinas da Comunidade, com grande surpresa da superiora e das restantes religiosas. Quando lhe perguntaram o que tinha acontecido, disse, com toda a simplicidade, que se tinha curado.

Começou, pouco a pouco, a levar uma vida normal e, como ainda não tinha recomeçado as suas tarefas, a superiora encarregou-a de acompanhar outra religiosa ao médico. Quando chegaram à consulta, o médico ficou surpreendido por a ver e a irmã Concepción, ao dar-se conta, disse-lhe, com toda a naturalidade que a doente era a outra. O médico não perguntou mais, pensando que eram assuntos de freiras.

Passados uns dias, as irmãs que viviam em Montalbán (Teruel), telefonaram-lhe e falou-lhes com toda a normalidade. As irmãs ficaram surpreendidas e perguntaram-lhe o que tinha acontecido. Ela respondeu que se tinha curado. Então as irmãs insistiram de novo e perguntaram-lhe a quem tinha pedido. Ela respondeu-lhe que a ninguém. Então as irmãs disseram-lhe que elas tinham rezado a Monsenhor Escrivá. Explicaram a razão por que o fizeram e como o tinham feito: uns meses antes tinham lido numa revista opiniões negativas acerca do fundador do Opus Dei, recentemente falecido. Elas, que tinham afeto pelo Opus Dei, pois tinham algum parente da Obra, aborreceram-se tanto, que tiveram uma reação muito peculiar e disseram: para se ver que eram falsos esses comentários negativos, pediram a Deus que curasse a irmã por intercessão de Monsenhor Escrivá. Além disso, todos os dias, a partir dessa altura, rezavam o terço por essa intenção.

Quando a irmã Concepción ouviu as irmãs, sentiu interiormente a segurança de que a sua cura se tinha realizado por intercessão do fundador da Obra. Recordava-se que, desde os anos quarenta, todos os dias, na Santa Missa rezava pelo Opus Dei, especialmente desde que um parente seu, da Obra, lhe falou das contradições que estavam a passar e de como era bom para a sua vida seguir esse caminho.

O processo canónico do milagre

Quando chegou a notícia à Vice postulação de Madrid, iniciaram-se as diligências para documentar o caso. Por um lado, pedir os relatórios médicos e testemunhos dos clínicos que a tinham atendido nesses anos; e, por outro, recolher as declarações das pessoas que conviviam com a irmã Concepción e das suas irmãs, que tinham pedido a cura. Concluído este trabalho, solicitou-se ao arcebispo de Madrid, o cardeal Enrique y Taracón, que se fizessem os trâmites necessários para iniciar um processo super miro, isto é, de milagre. Para este efeito, nomeou-se um tribunal que incluía um perito médico, enviado por Roma, para assessorar o tribunal nos temas médicos.

Em 21 de janeiro de 1982, constitui-se o tribunal e começaram as sessões presididas pelo juiz da Rota Feliciano Gil de las Heras. A 3 de abril, encerrou-se este processo, as atas originais guardaram-se no Arquivo da Arquidiocese de Madrid e enviou-se a Roma, à Congregação das Causas do Santos, uma cópia autenticada que foi guardada para se estudar depois, isto é, quando terminasse o processo de vida e virtudes e o Papa declarasse Venerável o Servo de Deus.

Mudanças na legislação e encerramento dos processos

Um ano e meio antes de finalizar a fase de instrução dos processos romano e madrileno, o Papa S. João Paulo II modificou a legislação sobre as Causas dos Santos. Do ponto de vista prático imediato, insistia na inclusão de documentação histórica de modo a apresentar ao povo de Deus um perfil de candidato aos altares. Isto fez, como veremos, com que se incluíssem mais documentos antes do encerramento dos processos.

Os processos romano e madrileno seguiram o seu curso e em 26 de junho de 1984, o cardeal Ángel Suquía encerrou o de Madrid. Dois anos mais tarde, a 8 de novembro de 1986, o cardeal Poletti encerrou o processo de Roma. Este atrasou-se mais pela inclusão da documentação solicitada depois da nova regulamentação.

Para fazer uma ideia do trabalho destes anos, juntando os dois processos, houve mais de 980 sessões e declararam 92 testemunhas. Todos tinham conhecido e convivido pessoalmente com Josemaria Escrivá. Mais de cinquenta por cento das testemunhas não pertenciam ao Opus Dei.

As declarações incluíram-se em 22 volumes, somando um total de cerca de 11 000 páginas.

Às declarações processuais se juntaram mais de 100 testemunhos, escritos por testemunhas da vida do fundador e selecionados entre os mais de 10 000 arquivados na postulação.

Na fase final da instrução dos processos, incluiu-se uma série de documentos, que ocupavam 11 volumes, e completavam informação sobre a vida de Josemaria Escrivá em distintos âmbitos: familiares, eclesiásticos, civis, académicos, etc. Concluída a fase processual, achou-se conveniente juntar mais documentação, que abrangia mais 5 volumes. Estes documentos eram fruto da investigação realizada em quase 400 arquivos públicos e privados, civis e eclesiásticos.

Por último, entregaram-se os escritos do Fundador, publicados e inéditos. No total, somavam 13 000 páginas, reunidos em 71 volumes. O tribunal romano encarregou o estudo crítico das obras de Josemaria Escrivá a quatro teólogos censores, dois para as obras publicadas e dois para as obras inéditas. Como é lógico, não pertenciam ao Opus Dei.

Reações ao encerramento dos processos

Quando a imprensa noticiou o encerramento do processo madrileno, houve uma série de pessoas críticas em relação à santidade do fundador que pediram para serem ouvidas pelo tribunal. Alegavam que, poucos meses antes de começar o processo, se apresentaram ao arcebispo de Madrid e lhe entregaram um pedido em relação a isso e alguns escritos que recolhiam as suas recordações. O arcebispo de Madrid informou disto o juiz da Causa que lhe pediu para lhe entregar essa documentação. Por qualquer razão, essa documentação ficou na Cúria de Madrid e não chegou ao tribunal. Entretanto, tinha mudado o arcebispo de Madrid e, a pedido do juiz do tribunal, passou-lhe a documentação. Reconstituiu-se o tribunal para analisar esses documentos e, depois de um exaustivo estudo, decretou que não havia lugar para essa reclamação. Segundo o direito, os tribunais têm obrigação de ouvir as testemunhas contrárias, isto é, aqueles que podem apresentar alguma prova ou indício que ponha em dúvida a sua santidade. Porém, estabelece-se que não devem ser escutadas as testemunhas hostis e, pela documentação estudada, chegou-se à conclusão de que estas testemunhas se enquadravam nessa categoria. O resultado deste processo foi enviado à Congregação dos Santos de Roma que, depois de o estudar, confirmou a resolução da diocese de Madrid.

Estudo na Congregação dos Santos e Declaração de Venerável

Terminados os processos, começava a fase de estudo. Para isso, a Congregação dos Santos nomeou o dominicano Ambrósio Eszer como Relator. A sua missão era dirigir o trabalho da Postulação na elaboração da Positio, ou seja, a exposição sistemática das provas que mostram a vida e virtudes do servo de Deus, tanto a declarações e os testemunhos dos inquiridos como o resultado da investigação histórico-documental.

Na elaboração da Positio trabalhou uma equipa de especialistas em Teologia, História da Igreja e Direito Canónico com a colaboração de especialistas em informática. Passado um ano e meio, o Relator, o Padre Eszer, apresentou a Positio à Congregação, em junho de1988.

Quando a Congregação das Causas dos Santos recebeu a Positio, nomeou uma série de Consultores, presididos por Mons. Petti, Promotor Geral da Fé. Depois de estudar a documentação, em 19 de setembro de 1989 pronunciou-se a favor da heroicidade das virtudes do Fundador. Seguiu-se o estudo pela Congregação de cardeais e bispos que também se pronunciou unanimemente a favor a 20 de março de 1990.

Por último, o Santo Padre, S. João Paulo II, promulgou, em 9 de abril de 1990, o Decreto de heroicidade de virtudes, pelo qual Josemaria Escrivá foi declarado Venerável.

Declaração do milagre

A declaração de Venerável era necessária para estudar a documentação do processo do milagre instruído. Uma vez dado esse passo e, como o milagre era de natureza médica, foi estudado pela chamada Consulta Médica, isto é, um grupo de médicos experientes que assessora a Congregação dos Santos. Esta Consulta Médica concluiu, a 30 de junho, unanimemente, que a cura não era explicável por causas naturais.

O seguinte passo corria a cargo de um Congresso peculiar de consultores teólogos, nomeado pela Santa Sé, que deviam verificar, pelas provas apresentadas, que havia uma relação direta entre a oração dirigida ao Servo de Deus e a cura. Em 14 de junho de 1990, deu um parecer unânime. Um ano depois, a Congregação ordinária de Cardeais e Bispos da Congregação dos Santos determinou, também unanimemente, o caráter milagroso da cura e a sua atribuição ao Servo de Deus.

Só faltava que o Santo Padre, perante estes pareceres, promulgasse o decreto correspondente desta cura milagrosa, o que aconteceu em 6 de julho de 1991.

Cumpridos os requisitos prescritos na legislação, o Papa, S. João Paulo II, determinou, em setembro de 1991, que a cerimónia da beatificação teria lugar a 17 de maio de 1992, na Praça de S. Pedro, em Roma.

A opinião pública perante a notícia da beatificação de Josemaria Escrivá

Até esse momento a opinião pública não tinha mostrado especial interesse pelo tema, mas, de repente surgiu uma campanha de opinião contrária à beatificação, especialmente nos meios laicistas e alimentada por alguns eclesiásticos, religiosos e antigos membros do Opus Dei, que, quaisquer que fossem as razões, se sentiam feridos e se erigiram em porta-vozes de todo o tipo de críticas. Com essas críticas, pretendiam parar a beatificação.

Todas estas críticas se desvaneceram quando, a 17 de maio de 1992, S. João Paulo II beatificou Josemaria Escrivá numa Praça de S. Pedro a abarrotar. O ambiente de piedade, de alegria, de convivência e, claro, de festa, foi a melhor resposta aos preconceitos e críticas recebidos.

Rumo à Canonização. O milagre operado ao Dr. Nevado

A beatificação é o passo prévio para a canonização, pela qual, o beato passa a ser denominado santo. Para atingir essa meta é necessário, normalmente, que a Igreja reconheça um novo milagre obtido por intercessão do Beato e realizado depois da beatificação. Digo normalmente, porque o Papa, em alguns casos, pode dispensar deste milagre para chegar à canonização.

Em relação a Josemaria Escrivá, não tardou a poder estudar-se um favor que apresentava traços de cura extraordinária. Deu-se com um médico estremenho, de Almendralejo, o Dr. Manuel Nevado Rey.

Esta é sinteticamente a sua história: o dr. Nevado tinha sido diretor de uma clínica em Almendralejo, em que eram atendidas patologias de todo o tipo, exceto as que requeriam meios mais extraordinários. Os casos mais frequentes eram os traumatismos, as fraturas de ossos, etc. No início dos anos sessenta, o hospital adquiriu um aparelho de Raios X, conhecido como a Bola de Siemens. Para os especialistas de traumatologia, o uso do Raios X para restringir fraturas supôs um avanço extraordinário, pois podiam ver bem o estado da rutura. As instruções para o uso desse aparelho diziam que os médicos deviam usar proteção, tanto na cara como nas mãos. Na cara era necessário porque permitia ver a fratura através de um cristal especial, mas, nas mãos, era necessário usar umas luvas especialmente incómodas, de modo que muitos médicos, por comodidade, não as usavam, desconhecedores dos problemas que a radiação podia causar.

O Dr. Nevado contava que, durante esses anos até início da década de noventa, foram vários milhares de intervenções, nas quais expôs as mãos à influência do Raios X. Como consequência, no início de 1990, tinha deixado de operar, pois perdera a sensibilidade das mãos e tinha alguns dedos protegidos por esparadrapos.

Ao longo da sua carreira profissional, o Dr. Nevado tinha adquirido umas quintas agrícolas. Em novembro de 1992, precisou de ir ao Ministério de Agricultura para pedir um subsídio da União Europeia para uns trabalhos que queria realizar nas suas terras. Quando chegou ao Ministério, ia com a mulher e, enquanto esperavam, apareceu na sala de espera um engenheiro que era do Opus Dei e que se interessou pelo motivo da sua presença. Imediatamente notou o estado das mãos e lhe perguntou a que se devia aquilo. Com simplicidade, explicou-lhe, sem lhe dar muita importância, o que acontecia e que, devido a isso, tinha deixado de operar. O engenheiro, depois de ouvir a explicação, deu-lhe uma pagela do Beato Josemaria, animando-o a que pedisse a cura. Pouco depois despediu-se do casal, pois já iam ser recebidos pela pessoa encarregada de os atender.

Quando saíram, o Dr. Nevado comentou com a mulher como o caso era curioso: tinha ido ao Ministério por um assunto de vides e cepas e tinham saído com uma estampa do Beato Josemaria. Desde então, começou a rezar-lhe esporadicamente pedindo a cura.

Próximo do Natal, o casal foi a Viena para participar num congresso médico e, além disso, aproveitaram a ocasião para visitar a cidade. Ao entrarem em algumas igrejas, viram que havia, à disposição dos fiéis, pagelas do Beato Josemaria. Comentou à mulher a surpresa de as encontrar ali. Nesses momentos, sentiu a necessidade de pedir ao Beato a sua cura, sem nenhuma fórmula especial, mas manifestando interiormente o pedido.

De regresso a Almendralejo, continuou com a sua atividade médica que realizava no hospital de Zafra, uma localidade vizinha. Um bom dia, passado o Natal, o engenheiro que lhe tinha dado a pagela, telefonou-lhe para Almendralejo para lhe comunicar o resultado das diligências no Ministério. Como não estava em casa, ficou de telefonar noutra ocasião. À terceira tentativa, ao ver que não podia comunicar com ele, pediu à mulher se lhe podia dar um telefone de contacto, do trabalho. A mulher disse-lhe que não seria possível contactar com ele, pois durante todo esse dia estava em Zafra a realizar operações cirúrgicas. Isto surpreendeu o engenheiro e perguntou à mulher, que era enfermeira, se já tinham desaparecido as lesões das mãos. Então ela deu-se conta de que algo especial tinha acontecido. Falou depois com o marido e convenceu-se de que algo sobrenatural se tinha passado com as mãos dele.

Assim o relata o Dr. Nevado: “No mês de novembro de 1992, quando fui ao Ministério da Agricultura, tinha os dedos das mãos muito afetados. Na mão esquerda, o indicador, o médio e o anelar; na direita, sobretudo, o indicador e o do meio. Concretamente tinha diversas placas de hiperqueratose e úlceras de diversos tamanhos nos três dedos mencionados da mão esquerda – alguma atingia os dois centímetros de diâmetro maior – e outras várias lesões no dorso da mão esquerda e nas falanges proximais e no dorso da mão direita.

Incomodavam-me bastante as lesões das mãos e tive de ir deixando de operar. Muita gente não as via, porque fazia o possível por as esconder. Pode dizer-se que nenhum médico me aconselhou tratamento, porque se sabe que não se pode fazer nada perante a radiodermite. Algum disse-me que pusesse vaselina ou lanolina para suavizar, o que eu já costumava fazer.

A partir do dia em que me deram a pagela, desde o momento em que me pus sob a intercessão do Beato Josemaria Escrivá, as mãos foram melhorando e, aproximadamente, em quinze dias, desapareceram as lesões e ficaram como agora, perfeitamente curadas.

É evidente que esta cura não se pode explicar por motivos naturais. Já disse que a radiodermite é incurável e que não utilizei nenhum medicamento. Só pensava em que algum dermatologista me fizesse um transplante de pele para fechar as úlceras, mas não cheguei a fazer nada. Embora procurasse que não me vissem as mãos, há muitas pessoas que podem testemunhar o estado em que estavam: como é evidente, a minha mulher, um dos meus filhos que é médico anatomopatologista; dois médicos de dermatologia aos quais as mostrei algumas vezes: Isidro Parra e o professor Ginés Sánches Hurtado.

Conto aqui como sucedeu a cura da minha radiodermite. Eu temia muito que se produzisse uma metástase, a qual teria tido um prognóstico muito mau, mas não sucedeu. Simplesmente curou-se a radiodermite e eu só posso atribuir a cura ao Beato Josemaria Escrivá de Balaguer.

Desde a cura, voltei a trabalhar normalmente e a fazer cirurgia geral”.

Declaração do milagre e canonização de Josemaria Escrivá

Quando chegou esta notícia à Postulação, iniciaram-se os trâmites para começar um processo de milagre na Cúria Diocesana de Badajoz. Em julho de 1994, encerrou-se este processo e enviou-se a Roma.

Em 10 de julho de 1997, a Consulta Médica da Congregação dos Santos afirmou, por unanimidade, que a cura do Dr. Nevado de “cancerização de radiodermite crónica grave no seu 3º estádio em fase irreversível” foi “muito rápida, completa e duradoura; cientificamente inexplicável”.

No dia 9 de janeiro de 1998, os Consultores Teólogos pronunciaram-se com voto positivo unânime e a 21 de setembro de 2001, a Congregação Ordinária de Cardeais e Bispos confirmou, unanimemente, o caráter milagroso da cura do Dr. Nevado e a sua atribuição ao Beato Josemaria Escrivá.

Em 20 de dezembro de 2001, teve lugar a leitura do Decreto sobre o milagre, na presença do Papa.

O Papa estabeleceu a data de 6 de outubro de 2002 para realizar a cerimónia da canonização que teve lugar numa Praça de S. Pedro e zonas limítrofes completamente a abarrotar.

Constantino Ánchel