Médico Português apanhado nas cheias da Alemanha

“Despache-se! Está em perigo. Ponha numa mochila o que precisa para 3 dias. Já voltamos para o buscar.” O testemunho de José Santos, médico no hospital em Niederwenigernem e cooperador do Opus Dei. Sobreviveu a umas cheias e casa-se em agosto.

Ver o testemunho de José Santos: TSF SIC Notícias Novo Semanário


Às 3 da manhã de 15 de junho, pancadas fortes na porta do quarto acordam-me com sobressalto. São os bombeiros de Hattingen.

Atordoado pergunto o que se passa, porquê tanto aparato. O rio Ruhr saltou as margens e invadiu toda a nossa zona residencial.

Na véspera liguei às autoridades, perguntando se não havia perigo após dias inteiros a chover torrencialmente. Não, estão a monitorizar a situação, de momento não havia recomendação especial, é aguardar.

O rio Ruhr saltou as margens e invadiu toda a nossa zona residencial.

Seis horas depois, os bombeiros dão-me 5 minutos para sair à pressa.

Perto de mim a força da água derrubou casas e centenas de pessoas desapareceram. Vejo da janela um enorme lago onde há seis horas havia carros, caixotes do lixo, mesas, cadeiras, candeeiros.

A situação é muito grave. Desço do primeiro andar para o rés-do-chão, e não quero acreditar: frigorífico, máquina de lavar roupa, caldeira, bancos, sofás, garrafas, bicicletas, boiam silenciosamente num mar de água que chega à cintura.

frigorífico, máquina de lavar roupa, caldeira, bancos, sofás, garrafas, bicicletas, boiam silenciosamente num mar de água que chega à cintura

Volto para cima, assomo à janela e avisto bombeiros, no seu barco. Não me assusto. Dá-me para dizer aos bombeiros que pelo menos é como em Veneza, até saímos de casa de barco. Os bombeiros não acham graça, eu compreendo. Durante dois dias vão correr atrás da esperança e a fugir da morte, resgatar pessoas e enxugar muitas lágrimas, sentir o peso de casas destruídas que são vidas alagadas, derrubadas.

A minha casa ficou destruída. Dá-me para dizer aos bombeiros que pelo menos é como em Veneza, até saímos de casa de barco.

Há pessoas nos telhados, e esperam. Desço de novo, entro na água até à cintura, mochila na cabeça, tento mas não consigo abrir a porta. A água de fora teima em fechá-la. Tenho de sair pela janela. Entrego a mochila e o telemóvel e salto da janela para o barco, e acomodo-me junto doutras pessoas e famílias.

Não sei porquê, estou calmo e sereno e perguntam-me como é que eu consigo estar tão calmo e tranquilo. Sai-me isto: - “Que posso fazer? Estou vivo e bem, o resto deixo nas mãos de Deus.”

Os rostos estão fechados, ensonados, gente a chorar, perderam tudo. Não sei bem porquê, mas estou calmo e sereno e perguntam-me como é que eu consigo estar tão calmo e tranquilo. Sai-me isto: - “Que posso fazer? Estou vivo e bem, o resto deixo nas mãos de Deus.” Sou olhado de soslaio, mas há também quem esboce um sorriso. Perguntam-me se já estive em situações semelhantes, a verdade é que, embora cada situação seja única, já vivi pior, quando estive na Índia e no Quénia.

Portugal, Espanha, Alemanha, Brasil, Irlanda...

Tudo começou há 12 anos quando deixei Portugal.Com 19 anos, depois de um ano de engenharia biomédica no Instituto Superior Técnico e era residente na Residência Universitária Montes Claros, em Lisboa.

Mudei-me para Saragoça para estudar medicina, residente noutra residência da Obra: “Miraflores”. Depois de 3 anos em Saragoça, decidi partir para a Alemanha estudar na Universidade de Bona e Colónia, residente noutra residência da Obra: “Residência Universitária Schweidt”. Regresso a Lisboa, para seis meses no Hospital Universitário Santa Maria, de novo residente em Montes Claros.

A América do Sul chama por mim e vou para o Brasil, nova experiência de seis meses na Universidade de São Paulo, e, tentem adivinhar, fiquei na Residência Universitária Pinheiros, também da Obra. Volto à Alemanha aonde termino o meu curso e volto ainda a Saragoça para preparar o exame de acesso à especialidade em medicina.

As residências da Obra foram oportunidades para estudo, atividades extracurriculares marcantes, voluntariado

As residências da Obra, uma evidente constante no meu percurso, foram oportunidades, que pude aproveitar, para estudo intensivo, atividades extracurriculares marcantes, voluntariado (destaco “Cooperación Internacional” e “Schulle Statt Straße”), encontro com pessoas de todo o mundo e com muito mundo. Fiz um campo de trabalho no Quénia que foi marcante.

Desde que comecei a especialidade em neurologia, sempre mantive os meus amigos e uma vida de católico praticante.

Quando estive os últimos seis meses na Irlanda, como parte da minha formação em neurologia, voltei a viver numa Residência da Obra, Gort Ard, onde podia ter missa diária, que me dava a força necessária para poder ajudar os meus pacientes da psiquiatria.

Voltei a viver numa Residência da Obra na Irlanda, Gort Ard, onde podia ter missa diária, que me dava a força necessária para poder ajudar os meus pacientes da psiquiatria

Nossa Senhora da Conceição protege sempre...

Voltemos ao barco. Foi o tempo de andar mais de 500 metros até terra firme. Estávamos mesmo no meio do rio. Levam-nos para um abrigo da proteção civil. Continuo calmo, encaminhado para uma pequena sala onde servem o pequeno-almoço. A minha principal preocupação é tranquilizar a minha família e a minha noiva. Digo-lhes que estou bem, peço que rezem por todos os que estão a sofrer e pelos bombeiros.

Trabalho num hospital psiquiátrico em Niederwenigern, mas as estradas estão alagadas (...) liguei para o hospital a perguntar por alternativas: “só se for de helicóptero”

Quero ir trabalhar, trabalho num hospital psiquiátrico em Niederwenigern, mas as estradas estão alagadas. Não é possível entrar nem sair. Os colegas do turno da noite, parece que vão fazer 48 horas de trabalho. Eu ainda chego a ligar para o hospital a perguntar por alternativas: “só se for de helicóptero”. Mas os helicópteros estão todos ocupados a resgatar pessoas. Sem mais nada que fazer, a não ser aguardar por notícias, vou rezando.

Tento relaxar e procuro uma igreja aberta onde me possa proteger e meditar. Acalmo, é sempre bom ouvir o sussurrar do nosso coração.

Família, amigos e as pessoas da minha terra, Moita dos Ferreiros, são incansáveis e estão em contacto comigo constantemente. Até a presidente da Junta me enviou uma mensagem de força, afirmando que a padroeira, Nossa Senhora da Conceição, protege sempre os moitenses aonde quer que eles vão e em quaisquer circunstâncias.

Até a presidente da Junta de Freguesia me enviou uma mensagem de força, afirmando que a padroeira, Nossa Senhora da Conceição, protege sempre

Às 15 horas as autoridades indicam um hotel onde ficar nas próximas noites. A incerteza abate-se sobre mim… “O que aconteceu à minha casa, às minhas coisas?” “Quando posso voltar?”. A partir desse momento entendo mais cruamente a realidade que me rodeia. Tento relaxar e procuro uma igreja aberta onde me possa proteger e meditar. Acalmo, é sempre bom ouvir o sussurrar do nosso coração.

A primeira noite é complicada, não consigo dormir e tenho pesadelos...

No dia seguinte, as águas resolvem descer depois de treze horas sem chover, é possível voltar ao trabalho. No trabalho oferecem-me ter cinco dias de férias, mas rejeito veemente. Tenho um dever para com os meus pacientes e, além do mais, o trabalho acalma e deixa-me mais focado.

no trabalho oferecem-me ter cinco dias de férias, mas rejeito veemente. Tenho um dever para com os meus pacientes e, além do mais, o trabalho acalma e deixa-me mais focado

O que era para ser três dias, transforma-se em dez. Nos primeiros três dias era impossível chegar até casa, continuava tudo alagado. Depois, as autoridades selaram as casas, até um engenheiro ou arquiteto confirmar que se podia voltar a habitar sem riscos.

A energia elétrica demorou uma semana a voltar, pois tudo tinha que estar seco. Entretanto, em casa, os trabalhos de manutenção e limpeza começaram, imensos escombros saíram, o rés-do-chão ficou muito danificado e teve de se tirar tudo, até o chão. Nada se pôde aproveitar, frigorífico, caldeira, máquina de lavar roupa, tudo para o lixo.

A esperança nunca me abandonou, caso-me em agosto, sabia que não ia falhar momento tão importante. O futuro começa hoje e a alegria do amanhã, manteve-me focado e feliz.

Os prejuízos só na minha área ascendem a mais de meio milhão de euros. Os meus pertences ficaram salvaguardados, o primeiro andar não sofreu danos.

Pude regressar finalmente depois do susto, ainda há muito trabalho para fazer, mas o pior já passou. A esperança nunca me abandonou, caso-me em agosto, sabia que não ia falhar momento tão importante. O futuro começa hoje e a alegria do amanhã, manteve-me focado e feliz.