Fazer do centro uma casa de família (2)

As famílias cristãs são lugares onde todos vivem e se desvelam pelos outros. Algumas derivas que podem adormecer esta lógica, e linhas de ação para a despertar.

Fazer do centro uma casa de família (2). As famílias cristãs são lugares onde todos vivem e se desvelam pelos outros. Algumas derivas que podem adormecer esta lógica, e linhas de ação para a despertar.

Numa das suas últimas cartas aos seus filhos no Opus Dei, S. Josemaria refletia sobre a “nova lógica” da família de Deus na terra. Já desde os dias de espera em Nazaré, o Senhor tinha introduzido Maria e José no modo de raciocinar e de viver daquele Menino que ia aniquilar-se e dar tudo, porque não tinha vindo para ser servido, mas para servir[1]. É a mesma lógica que Deus quer para todos os lares cristãos:

«Reparai em como é o ambiente em que Cristo nasce. Ali, tudo nos insiste nesta entrega sem condições: José – uma história de duros sucessos,combinados com a alegria de ser o guarda de Jesus – põe em jogo a sua honra, a serena continuidade do seu trabalho, a tranquilidade do futuro; toda a sua existência é uma disponibilidade pronta para o que Deus lhe pede. Maria manifesta-se-nos como a “escrava do Senhor” (Lc 1, 38) que, com o seu fiat, transforma a totalidade da sua existência numa submissão ao desígnio divino da salvação. E Jesus? Bastaria dizer que o nosso Deus se nos mostra como uma criança; o Criador de todas as coisas apresenta-se-nos nas fraldas de um menino pequeno, para que não duvidemos de que é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem (…). Temos de nos impregnar desta nova lógica, que Deus inaugurou ao descer à terra. Em Belém, ninguém reserva nada de seu. Aí não se ouve falar da minha honra, nem do meu tempo, nem do meu trabalho, nem das minhas ideias, nem dos meus gostos, nem do meu dinheiro. Aí tudo é colocado ao serviço do grandioso jogo de Deus com a humanidade, que é a Redenção»[2].

A vida de família renova-se e multiplica-se de acordo com esse “grandioso jogo” do serviço, entendido não como servilismo, nem como uma acumulação fria de prestações, de serviços… mas como uma atitude permanente de viver para os outros, como instrumentos do cuidado quotidiano de Deus. Esta maneira de viver, que S. Josemaria designava por vezes o «são preconceito psicológico de pensares habitualmente nos outros»[3], quer ser o teor habitual da convivência nos centros da Obra. E graças a Deus, é isto que, de muitos modos, captam diversas pessoas que os frequentam: a atitude que leva a tornar a vida agradável aos outros, a dedicar-lhes tempo e escuta, embora talvez nos urjam trabalhos pendentes, a ajudá-los a resolver um problema, a pedir desculpa quando é necessário, a adiantar-se com um sorriso, a desempenhar um encargo de outra pessoa que está cansada ou chega tarde... e tantas outras oportunidades que o conviver nos apresenta dia a dia.

No entanto, como pode suceder em qualquer família, a vida diária exerce por vezes um certo efeito de erosão; e, com o tempo, podem enraizar-se outras dinâmicas na casa ou no nosso carácter. Sem pretender ser exaustivo, podemos resumi-las em quatro derivas, em que podem aparecer às vezes modos excessivamente centrados no funcionamento da casa, em detrimento das pessoas que a habitam, ou o que podíamos denominar “equívocos relacionais”: conflitos que surgem de formulações equivocadas sobre a convivência. Evidentemente, o que a seguir se descreve não são situações que se deem, por assim dizer, de modo quimicamente puro; são antes tendências que podem introduzir-se paulatinamente, talvez misturadas entre si, e que mostram como a fraqueza humana tende a fundir-se com o mais valioso e querido. Uma breve reflexão sobre umas e outras permitir-nos-á identificar «essas raposas pequenas que devastam as vinhas» (Ct 2, 15). Ficará assim delineada, por contraste, a “lógica” que Deus quer para as casas de família, e concretamente para os centros da Obra.

Eficaz, mas frio

As duas primeiras derivas que podem ofuscar a verdadeira lógica do serviço situam-se no âmbito do funcional. Se pensarmos em dois termos de que S. Josemaria se servia com frequência para caracterizar a Obra – «família, e ao mesmo tempo, milícia»[4] –, o risco aqui seria o de uma certa descompensação, pela qual a “milícia” tenderia a eclipsar a família, dando lugar a casas eficazes, mas com pouco calor, ou talvez com tensões ou feridas mais ou menos soterradas.

Uma primeira deriva neste sentido é a que podíamos denominar lógica da sinergia. Esta lógica está em parte ligada ao desenvolvimento da sociedade nas últimas décadas, que trouxe consigo, como reverso de tantos serviços e possibilidades, uma infinidade de tarefas e de frentes a que atender: faturas, diligências administrativas, mensagens… O resultado é que facilmente podemos gastar horas a correr atrás dos acontecimentos e das gestões. E, tal como numa família qualquer sucede por vezes que, à base de estar pendentes do trabalho, da casa, dos filhos, e de tudo o que é preciso fazer por eles, marido e mulher podem acabar por descuidar a amizade matrimonial (a sua intimidade, o seu afeto mútuo…), também num centro, e por maioria de razão quando se atendem nele vários tipos de trabalho apostólico, podia acontecer que uns e outros acabassem por ter entre si um relacionamento mais próximo do funcional, quase limitado às «coisas de que é preciso ocupar-se»[5].

O centro tenderia então a funcionar com sinergia (syn-ergon, união de ação), mas com importantes carências de simpatia (syn-pathos, união de sentimento). Cada um faria os seus encargos, as suas tarefas, o seu plano de vida; a casa funcionaria como um mecanismo de precisão – cada coisa estaria no seu lugar, cada pessoa nas suas tarefas… –, mas faltaria a capacidade de simpatizar, de sentir com os outros: de passar bem com eles, sofrer com eles. S. Josemaria advertia deste risco com palavras fortes: «No dia em que vivermos como estranhos ou como indiferentes, matámos o Opus Dei»[6]. Aliás, como sucede ao simples nível humano em qualquer organização, a falta de simpatia entre uns e outros acabaria por prejudicar ou bloquear também a sinergia.

Uma segunda deriva podíamos denominar lógica da ordem. Também aqui existe a analogia com qualquer casa de família, em que um ou outro dos cônjuges dá talvez uma importância excessiva a que as coisas sejam «como devem ser»: o horário, a ordem material, os encargos de uns e de outros… Evidentemente que todas as casas precisam de certas diretrizes para não mergulharem no caos, mas às vezes podem acolher-se umas expetativas desmedidas sobre uma família ideal, uma maneira de fazer as coisas que se calcula que seja a correta e que devia ser seguida a todo o custo, até por vezes à custa da paz familiar. E, contudo, a experiência de tantas famílias mostra como, quando há uma hipertrofia de regras, e não se dá atenção ao cuidado das relações entre pais e filhos, se gera espontaneamente frustração, ou mesmo rebeldia, da parte dos filhos. Entre outras coisas, a isso se referia S. Paulo ao escrever: «Pais, não irriteis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo» (Cl 3, 21).

Estes modos de ver e de fazer podiam resultar igualmente problemáticos no caso de um centro. Por um lado, porque os que lá convivem são adultos, cada um com a sua liberdade e a sua responsabilidade; por outro, porque o centro, sendo uma iniciativa apostólica chamada a “funcionar” e uma casa aberta a todos, é também lar dos que o habitam, e é necessário que estes o possam sentir como tal, e não como mero prolongamento da sua vida profissional. Em relação a uma casa de família convencional, um centro da Obra tem a peculiaridade de que nele, casa e trabalho coexistem em permanência; e também que aqueles que se ocupam dessas tarefas apostólicas estão lá porque lhes dá na gana. Isto, sendo a razão mais sobrenatural[8], e, portanto, mais radical, deve ser também princípio de tato e de sensibilidade. «Para sermos muito espirituais, muito sobrenaturais – ensinava S. Josemaria –, é preciso sermos muito humanos, esforçar-se por ter um sentido entranhadamente humano da vida»[9].

À vista destes elementos, pode entender-se como é problemático colocar demasiada ênfase sobre critérios, diretrizes, objetivos, etc. A passagem do tempo acaba por pôr de manifesto os inconvenientes desta lógica. O mais óbvio é que quem centra o foco exclusiva ou principalmente no “previsto” pode confundir a importância dos meios com a dos fins, e acabar por limitar a liberdade dos outros em questões que poderiam admitir diferentes abordagens[10]. Outro inconveniente é que, se não se consegue harmonizar o que se entende que “devia ser” com a espontaneidade que deve caracterizar a vida de uma família, o ambiente pode tornar-se estranho e tenso. E, por fim, o facto é que quem se centra em ter a situação sob controlo consegue sempre vitórias frágeis: na sua priorização da eficácia talvez não esteja a conseguir verdadeiramente ganhar os corações dos outros e ajudá-los a crescer em liberdade[11]. Quem aspira fundamentalmente a controlar a situação esgota-se facilmente, e pode cansar os outros, que podem sentir-se pouco protagonistas da construção daquele lar familiar.

Equívocos relacionais

Outras duas derivas que podem introduzir-se na vida familiar podem ser definidas como equívocos ou “curto-circuitos” relacionais. Tal como as anteriores, têm as suas analogias na vida de algumas famílias e caracterizam-se por causar uma certa insatisfação de fundo naqueles que se veem bloqueados por estes equívocos. Uma personagem das parábolas do Senhor personifica este tipo de situações. É o filho mais velho que atira à cara do pai uma série de agravos na comparação com o irmão, e que acaba por precisar de ouvir estas palavras: «Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu» (Lc 15, 31).

A primeira destas derivas podia designar-se por lógica do mérito. É a de quem externamente pode estar cheio de atenções com uns e outros, e de uma grande capacidade de sacrifício para se ocupar de tarefas da casa e dos que nela habitam; mas atua, em geral de modo inconsciente, na expetativa de que ganhará o afeto dos outros como contrapartida aos seus esforços. Esta lógica, que se aplica razoavelmente a muitos âmbitos da vida, não funciona numa família, porque não corresponde à realidade. Aqui estamos no terreno da gratuidade: somos família, e tem pouco sentido querer juntar méritos para que nos queiram bem.

Claro que quem sente a família como própria desvive-se por ela; mas sem exigir contrapartidas afetivas, tal como não as exige um pai ou uma mãe para amar os filhos (pelo contrário, e contra toda a previsão, encontram a sua felicidade neste desvelo). É certo que por vezes podemos sentir a falta de uma certa consideração pelos nossos esforços; mas, se habitualmente pensamos em que nos devem corresponder pelo que fazemos, o nosso olhar pode tornar-se autorreferencial: como o do filho mais velho da parábola, que vive na casa do pai, mas não a sente realmente como sua. Este filho conjuga só as pessoas no singular – eu, tu, ele –, a partir da censura e do agravo por comparação. E esquece-se do nós, que é o terreno a que o pai o queria atrair. Com o tempo, a sua lógica deixa transparecer uma profunda insatisfação; compara e vigia a liberdade dos outros (a do pai, a do irmão), aos quais julga, porque dão ou porque recebem aquilo que, segundo a sua maneira de ver, não devem (cf. Lc 15, 29-32). Deste modo, o que aparece aos seus olhos como uma reivindicação justa, na realidade é zelo amargo, orgulho ferido.

Há, por último, uma deriva que podíamos denominar lógica do sentimento, em que o critério de valorização da vida em família se centraria nas próprias sensações: como me faz sentir a vida em família? Sinto-me bem? Sem dúvida que estas são perguntas a que convém prestar atenção; uns e outros deviam estar tão atentos a detetar o que melhora o ambiente da casa como o que podia estar a gerar mal-estar. No entanto, mesmo que o bem-estar emocional seja um indicador importante, não pode converter-se no critério principal, na motivação fundamental para colaborar na construção do lar.

Se esta lógica se instalasse numa pessoa, tornar-se-iam indispensáveis as boas sensações para se esforçar por cuidar da família. E, no entanto, há alturas em que a família está a precisar de que ponhamos de lado as nossas preferências. Como nos recordou com frequência o Padre, «Podemos fazer com alegria – e não de má vontade – o que custa, o que não agrada, se o fazemos por e com amor e, portanto, livremente»[12]. Alguém podia não conseguir sobrepor-se a essa dificuldade porque, enquanto sente que “tem direito” a receber afeto, e o exige como um amor incondicional, não se questiona sobre o seu próprio contributo. É o que sucede ao irmão mais velho da parábola, que não considera se o pai necessita, da sua parte, algum “extra”: só pensa na festa que não pôde ter (cf. Lc 15, 29).

Centrar-se demasiado em exigir o afeto tende a gerar a aceção de pessoas: perante a amizade sincera e aberta que é própria da relação fraterna[13], instala-se então a dinâmica das amizades particulares[14] que, pelo que têm de exclusivas e excludentes, são caricaturas da amizade fraterna; assim, na casa haveria “os amigos” e “os outros”. Naturalmente, uma atitude deste tipo prejudicaria o ambiente de família, mas também a própria pessoa interessada, que podia acabar facilmente amargurada, sem recursos afetivos. O dom do celibato, orientado como está a gerar uma grande «capacidade de amar todas as pessoas»[15], ver-se-ia assim tristemente minimizado.

A lógica do serviço é a lógica do dom

As derivas esboçadas têm em comum conter implícito um até aqui, uma delimitação dos esforços e da entrega. Por vezes (e isto sucede em qualquer setor da sociedade), por trás de certas crises ou quebras físicas e psíquicas, pode esconder-se uma lógica de pensamento e de comportamento que se focou numa fria pretensão de eficácia, de controlo, de ganhar méritos ou de esperar afeto; ou numa mistura de vários destes elementos, entre outras possibilidades[16].

Este tipo de crises, com que a própria vida quer devolver-nos à realidade, podem ser ocasião de purificação e de retificação: ocasião para se dar conta de que se tinha perdido, ou não se tinha chegado a encontrar, o enfoque correto. No entanto, se não se encaram, podem derivar para uma ânsia de evasão, para uma necessidade de eventos extraordinários que supram a frustração; embora, no fim de contas, a não apaguem, por não abordarem o problema na sua raiz. Sucede talvez então que a parte mais celebrativa da vida de família (precisamente tantos momentos que saem da rotina) não são suficientemente desfrutados: nunca parece haver um retorno suficientemente satisfatório. E enquanto uma pessoa podia viver feliz e agradecida com o que tem, vive a suspirar pelo que não tem.

Perante estas derivas, que reduzem a vida e a vocação, situa-se o «grandioso jogo de Deus com a humanidade, que é a Redenção»[17]. A lógica do serviço leva-nos a dar, não por querermos receber, mas sim porque «conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1Jo 4, 16). No centro da nossa vida está Deus, que nos ama e nos enche de graça para nos darmos generosamente: «Recebestes de graça, dai de graça» (Mt 10, 8). Assim, uma pessoa já não constrói o seu lar a partir do cálculo. A lógica do serviço vai-a levando rumo à simplicidade do pai ou da mãe, que não precisam de fazer propósitos nem de acumular atos de serviço[18]: dão-se pura e simplesmente, prestam-se a ser um silhar discreto[19] para que as paredes sejam mais robustas e o calor de lar se mantenha melhor. E, contemplando a beleza do lar que estão a construir, enchem-se de alegria e de agradecimento.

É esta a lógica filial de Jesus, o Filho que pode dizer verdadeiramente ao Pai: «Tudo o que é meu é teu e o que é teu é meu» (Jo 17, 10). Aqui, a melhor recompensa é o amor de Deus, que sempre nos precede: em cada momento, Ele está a amar-nos primeiro (cf. 1Jo 4, 10). E o coração vai cheio desse amor quando está com os outros. Um amor «sem descanso e sem cansaço»[20], porque o que realmente cansa é «dar voltas em redor do próprio eu»[21]. Servir, pelo contrário, viver efetivamente para os outros, pode por vezes custar; mas, no fundo, não cansa.

Nuances diferentes, de acordo com os lugares e as pessoas

«Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores. Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigiam as sentinelas» (Sl 126 [127], 1). Estas palavras da Escritura adquirem um brilho especial ao pensar na presença real do Senhor nos oratórios dos centros da Obra: Ele constrói a casa; Ele guarda a cidade, se O deixarmos. «Se o centro dos teus pensamentos e esperanças está no Sacrário – escreve S. Josemaria – que abundantes os frutos de santidade e de apostolado!»[22]. E é assim: quando alguém vive, a partir de Deus, para os outros, torna-se um facilitador, inspirador e dinamizador da santidade, que é o fundamento mais firme de um lar de família.

A forma de manifestar esta dinâmica do serviço – «o “são preconceito psicológico” de pensares habitualmente nos outros»[23] – será diferente em função das pessoas. Cada centro deve ser um mosaico único, formado pelos talentos que cada um coloca ao serviço do calor de família. A expetativa do que significa a casa para cada um é diferente e, por isso, é importante não se reger por uma simples listagem de critérios de aplicação.

Cada centro acabará por dar um toque peculiar à maneira de celebrar as festas, de se ajudarem uns e outros na manutenção material da casa, ou no impulso de projetos apostólicos, ou na relação com as famílias. Há sempre algo de comum: o carinho, o sentido de humor, o sentido sobrenatural, as reuniões de família, as notícias do Padre e da família da Obra, a sobriedade alegre e a serenidade sobrenatural que permite um descanso reparador. Um mesmo espírito em toda a parte, com uma concretização viva em cada lugar. Por isto, sentimo-nos sempre em casa quando vamos a outra região ou a outro centro; porque sentimos a unidade e a diversidade – a riqueza – da Obra.

A lógica do serviço não poupa aos próprios defeitos, nem os alheios; e também não que uma pessoa se possa achar com mais ou menos gosto com quem vive com ela; ou que a casa e as atividades estejam melhor ou pior organizadas; ou à necessidade de nos esforçarmos por compreender quem nos rodeia[24]; ou de pedir perdão ou de perdoar, se for caso disso[25]. Mas (e é isso que é decisivo) esta lógica permite encontrar sempre recursos para avançar e para aproximar-se mais de Deus.

Quando se constrói a família à base de serviço, tudo ganha vida: nas alturas de tertúlia ou de refeição, está-se com mais atenção para fazer conversa, de modo a que os outros descansem; a correção fraterna reza-se e pensa-se, partindo de um grande carinho pela outra pessoa, e não pelo aborrecimento que nos possam causar as suas limitações; e conseguem passar-se por alto tantas coisas sem irritação: sorrindo e com um encolher de ombros[26]. O autêntico serviço, embora requeira o esforço de sair do nosso pequeno egoísmo, é um win-win; é sempre soma nas duas direções: na de quem serve e na de quem é servido. E de tão natural, até dá um certo constrangimento denominá-lo, chamar-lhe “serviço”. É, simplesmente, amor fraterno.

O papel insubstituível de cada um na construção da família

Na sua carta sobre as modalidades da vocação para a Obra, o Padre recordou a influência decisiva das administrações na criação do ambiente de família dos centros: «com o vosso trabalho cuidais e servis a vida na Obra, pondo a pessoa singular como o foco e a prioridade do vosso trabalho. Esta é uma expressão muito concreta de que a Obra é família, uma família verdadeira, e não em sentido metafórico»[27]. Trata-se de um trabalho performativo, no sentido em que cria um ambiente propício e propõe um referente em que pode olhar-se para o contributo de cada um para o ambiente de família. Contudo, para encarnar, para se fazer vida, essa base necessita do papel insubstituível de todos na casa.

Para os membros do conselho local de um centro, a tarefa de serviço que Deus lhes confia através da Obra consiste sobretudo em velar para que cada pessoa conte com a necessária formação e acompanhamento espiritual, além de um adequado bem-estar material. S. Josemaria sintetizava-o a: «com solicitude paterna e materna, cuidai das almas e dos corpos dos que vos estão confiados»[28]. Esta tarefa requer da sua parte responsabilidade, mas também grandes doses de paciência e de abandono em Deus. Assim, nasce a necessidade de compreender o modo de ser de cada um e os seus pontos fortes, sobre os quais se apoiarão para os ajudar a crescer, a cada um e ao centro no seu conjunto; veem com maior clareza que o verdadeiramente importante é que todos se aproximem mais de Deus, e não tanto que as coisas aconteçam de um determinado modo; e estão dispostos a pedir perdão, porque isso não só não os desautoriza, mas aproxima-os dos outros. Ao formular nestes termos a organização do centro, o ambiente não deixa de ter a exigência que toda a busca da santidade pressupõe, mas ganha na alegria e serenidade que tornam essa busca autêntica[29]. Todo o centro se pode sentir então identificado com a razão de ser desse lar: todos à uma, com os fins comuns e os particulares de cada um.

O sacerdote, por seu lado, pode ser com frequência um interlocutor que escuta e dá serenidade, e que ajuda a olhar com perspetiva e, ao mesmo tempo, com acuidade os diferentes aspetos da convivência diária. «Nós, sacerdotes, escrevia S. Josemaria, temos de ter o mesmo espírito que os outros, mas especialmente espírito de compreensão, de caridade, de conviver com toda a gente, de não nos escandalizarmos, de levantar, de ajudar, como uma mãe»[30]. Com maior motivo ainda que os outros, pois, o sacerdote deve ser instrumento de unidade e de esperança, «sem timidez nem complexos que são ordinariamente demonstração de imaturidade humana, e sem prepotências clericais que denotariam pouco sentido sobrenatural»[31]. Se para os diretores um risco pode ser a lógica da exigência, para o sacerdote pode sê-lo a do mérito: ele está sempre ao serviço do resto de uma maneira palpável, diferenciada e insubstituível; e poderia, sem se dar conta, gerar uma certa mentalidade de vítima, se lhe parecesse que os seus esforços não são valorizados. D. Álvaro ia assim ao encontro desta mentalidade: «Se desejais conhecer deveras em que se nota a alma sacerdotal, resumi-lo-ei com o nosso Padre: em não dizer nunca já chega. Não responder nunca “já chega” ao amor, não nos deter perante o sacrifício, como Cristo»[32].

«É normal que em muitas famílias convivam pessoas de diferentes gerações (avós, pais, filhos) e diferentes caracteres (…). Embora seja verdade que tudo isto possa por vezes levar a uma deterioração da unidade familiar, também é verdade que, com muita frequência, estas e outras dificuldades podem unir mais as famílias, quando há amor verdadeiro»[33]. Daí que todos os que vivem num mesmo centro, desde o veterano até ao último a chegar, tenham a missão de construir o lar, com os talentos que Deus lhes deu, e com o seu próprio modo de ser; de modo que a casa seja, para cada um, um lugar de intimidade, de amor incondicional e de descanso sereno. Todos têm um lugar insubstituível nessa tarefa, porque cada um sabe melhor que ninguém que talentos Deus lhe deu, para os pôr ao serviço de todos, com iniciativa e com generosidade. A fraternidade que se vive em cada um dos nossos centros será assim também um remanso de paz e um foco de inspiração para a vida dos agregados e supranumerários, e de todas as pessoas que se aproximarem do calor da Obra.

Por último, mas não menos importante, os doentes têm um papel especial, não só porque «para uma alma enamorada, as crianças e os doentes são Ele»[34], mas também porque são o desafio mais direto e prático às derivas negativas que víamos antes. Deixando-se cuidar, contribuindo com o que podem contribuir no seu estado, e sem ceder à lógica de quem não se sente suficientemente querido, podem ser um polo de coesão do centro, que unirá propósitos no serviço dos que mais o necessitam.

A vida de família do centro, construída sobre estas bases, irradia em seu redor o amor de Deus e abre, pouco a pouco aos que o habitam e aos que o frequentam, as portas da casa que Ele preparou para os que O amam. «Se vos quiserdes bem – dizia S. Josemaria –, cada uma das nossas casas será o lar que eu vi, o que eu quero que haja em cada um dos nossos recantos. E cada um dos vossos irmãos terá uns desejos santos de chegar a casa, depois do dia de trabalho; e terá depois vontade de sair para a rua (…), para esta guerra de paz»[35].


[1] cf. Fl 2,7; Mt 20, 28.

[2] S. Josemaria, Carta, 14/02/1974, n. 2.

[3] S. Josemaria, Forja, n. 861.

[4] «O Opus Dei é, certamente, família e, ao mesmo tempo, milícia. Família unida por um carinho alegre e amável; milícia, aptíssima para a luta espiritual» (De Spiritu, n. 64).

[5] Pode acrescentar-se a isto outro traço cultural do presente: a tendência a viver o tempo livre de maneira individualista, de modo que tudo o que não é trabalho tende a girar em torno dos meus interesses, dos meus gostos, das minhas atividades, da minha vida social, etc. Naturalmente, uma atitude deste tipo comprometeria de modo significativo o calor de família.

[6] citado em Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 16/02/2023, n. 9.

[8] cf. S. Josemaria, Cristo que passa, n. 17.

[9] S. Josemaria, Carta 27, n. 34, citado em E. Burkhart - J. López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría, Rialp, Madrid 2013, vol. III, p. 600.

[10] cf. Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 09/01/2018, n. 8.

[11] «A formação, ao longo de toda a vida, sem negligenciar a sua necessária exigência, tende em larga medida a abrir horizontes. Mas se, pelo contrário, nos limitássemos a exigir e a ser exigidos, poderíamos acabar por ver apenas o que não conseguimos fazer, os nossos defeitos e limitações, esquecendo o mais importante: o amor de Deus por nós» (Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 09/01/2018, n. 11).

[12] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 9/01/2018, n. 6.

[13] cf. Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 01/01/2019, n. 14-17.

[14] A noção de amizade particular tem uma história longa e complexa na tradição cristã. Mencionada pela primeira vez nos escritos de S. Basílio de Cesareia, encontrará desenvolvimento especial no Ocidente a partir da Imitação de Cristo e das obras de Sta. Teresa de Ávila e de S. Francisco de Sales. Sobre a compreensão desta noção em S. Josemaria, cf. Camino, edición histórico-crítica, n. 366.

[15] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 28/10/2020, n. 22.

[16] Ao mesmo tempo, escreve S. Josemaria, «cometeriam um grave erro os Diretores que permitissem que um filho meu, sem verdadeira necessidade, se encontrasse numas circunstâncias que exigissem dele uma heroicidade contínua, por esquecerem que essas situações devem ser transitórias e que se devem procurar os meios pertinentes para que cessem quanto antes» (Carta 27, n. 38).

[17] S. Josemaria, Carta, 14/02/1974, n. 2.

[18] «Quando há amor, atrevo-me a afirmar que nem sequer é preciso fazer propósitos. A minha mãe nunca fez propósitos de me querer bem, e basta ver que atenções tinha comigo!» (S. Josemaria, notas de uma reunião familiar, citado em Salvador Bernal, Monseñor Josemaría Escrivá de Balaguer. Apuntes sobre la vida del Fundador del Opus Dei; Rialp, Madrid 1980, 6ª ed., p. 37).

[19] cf. S. Josemaria, “Sillares” (27/07/1937) em Crecer para adentro, 233-239 (AGP, biblioteca, P12).

[20] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 296.

[21] «O que realmente cansa, meus filhos, é a soberba, o dar voltas em redor do próprio eu. E, além de afligir, impede a alma de se sentir perto de Deus» (Bto. Álvaro del Portillo, em Crónica, 9-1989, p. 1141; AGP, Biblioteca P01).

[22] S. Josemaria, Forja, n. 835.

[23] Ibid., n. 861.

[24] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 16/02/2023, n. 3-6.

[25] Ibid., n. 7-8.

[26] «S. José é maravilloso! É o santo da humildade rendida…, do sorriso permanente e do encolher de ombros» (S. Josemaría, citado em Andrés Vázquez de Prada, Josemaria Escrivá (III), Verbo, Lisboa 2004, p. 572, nota 170).

[27] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 28/10/2020, n. 15.

[28] S. Josemaria, Carta 27, n. 39.

[29] «“Sois todos tão alegres que a gente nem o espera!”, ouvi comentar. Vem de longe o empenho diabólico dos inimigos de Cristo, que não se cansam de murmurar que as pessoas entregues a Deus são "bisonhas". E, infelizmente, alguns dos que querem ser "bons" servem-lhes de argumento, com as suas "virtudes tristes"… Damos-Te graças, Senhor, porque quiseste contar com as nossas vidas, ditosamente alegres, para apagar essa falsa caricatura. Também Te peço que nunca nos esqueçamos disso» (S. Josemaria, Sulco, n. 58).

[30] S. Josemaria, notas de uma reunião, 19/03/1961, em Crónica II-1993, p. 189 (AGP, Biblioteca, P01).

[31] S. Josemaria, Entrevistas a S. Josemaria, n. 4.

[32] Bto. Álvaro del Portillo, Cartas de Familia, n. 377 (AGP, Biblioteca, P17).

[33] Fernando Ocáriz, Carta pastoral, 16/02/2023, n. 14.

[34] S. Josemaria, Caminho, n. 419.

[35] S. Josemaria, Crónica VII-1956, p. 7 (AGP, Biblioteca P01).

Carlos Ayxelá