Sumário
1. «Todos os sacerdotes somos Cristo». Eucaristia e identificação com Cristo.
2. «Empresto ao Senhor a minha voz». Familiaridade com a Palavra e disponibilidade para as almas.
3. «Empresto ao Senhor as minhas mãos». Amor à liturgia e obediência à Igreja.
4. «Empresto ao Senhor o meu corpo e a minha alma: dou-Lhe tudo». Sacerdote a cem por cento.
Introdução
Tornar Deus presente em todas as atividades humanas é o grande desafio dos cristãos num mundo secularizado e é a tarefa que S. Josemaria recordou a milhares de pessoas – sacerdotes e leigos – durante a sua vida. A sua mensagem pode resumir-se em poucas palavras: santidade pessoal no meio do mundo. Jesus Cristo far-se-á presente e ativo no mundo, nas famílias, na fábrica, nos meios de comunicação social, no campo..., na medida em que Cristo viva no pai e na mãe de família, no operário, na jornalista, no camponês...; quer dizer, na medida em que o operário, o jornalista, o esposo ou a esposa sejam santos. Como afirmou João Paulo II, «necessitam-se arautos do Evangelho peritos em humanidade, que conheçam a fundo o coração do homem de hoje, participem das suas alegrias e esperanças, das suas angústias e tristezas e, simultaneamente, sejam contemplativos, enamorados de Deus. Para isso necessitam-se novos santos. Os santos foram os grandes evangelizadores (...). Devemos suplicar ao Senhor que aumente o espírito de santidade na Igreja e nos mande novos santos para evangelizar o mundo de hoje»[1].
Este é o "segredo" face à indiferença e ao esquecimento de Deus; o nosso mundo necessita de santos; qualquer outra "solução" é insuficiente. O mundo atual, com a sua instabilidade e as suas mudanças profundas, reclama a presença de homens santos, apostólicos, em todas as atividades seculares: «Um segredo. – Um segredo, um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. –Deus quer um punhado de homens "seus" em cada atividade humana. –Depois... "pax Christi in regno Christi" – a paz de Cristo no reino de Cristo»[2].
A ausência de Deus na sociedade secularizada traduz-se em falta de paz; e, como consequência, proliferam as divisões, entre as nações, nas famílias, no local de trabalho, no convívio diário... Para encher de paz e de alegria esses ambientes, «temos que ser, cada um de nós, alter Christus, ipse Christus,outro Cristo, o próprio Cristo. Só assim poderemos empreender essa empresa grande, imensa, interminável, santificar a partir de dentro todas as estruturas temporais, levando aí o fermento da Redenção»[3]. Todos somos chamados a colaborar nesta tarefa apaixonante, com uma visão otimista diante do mundo em que vivemos: «Para ti, que desejas formar uma mentalidade católica, universal, transcrevo algumas características: (...) uma atitude positiva e aberta, face á transformação atual das estruturas sociais e das formas de vida»[4].
Nesse trabalho de transformação do mundo, percebe-se também o importante papel do sacerdote. Mas, quem é o sacerdote na sociedade de hoje? Como pode converter-se em fermento de santidade? A esta pergunta pode responder-se esmiuçando umas palavras de S. Josemaria que definem a identidade do sacerdote, também no mundo secularizado: «Todos os sacerdotes somos Cristo. Empresto ao Senhor a minha voz, as minhas mãos, o meu corpo, a minha alma, dou-Lhe tudo»[5].
1. «Todos os sacerdotes somos Cristo».
Eucaristia e identificação com Cristo.
São certamente os leigos quem, de modo capilar, tornam presente Cristo nas encruzilhadas do mundo. Ao mesmo tempo, a vida de Cristo que se inicia no Batismo necessita do ministério sacerdotal para se desenvolver. A grandeza do sacerdote consiste em que se lhe deu o poder de vivificar, de cristificar. O sacerdote é «instrumento imediato e diário dessa graça salvadora que Cristo nos ganhou». O sacerdote traz Cristo «à nossa terra, ao nosso corpo e à nossa alma, todos os dias; Cristo vem para nos alimentar, para nos vivificar»[6].
Como pastor de almas e como didtribuidor dos mistérios de Deus (cfr. 1 Cor4, 1), o sacerdote, especialmente num mundo indiferente à fé, deve alentar todos para que progridam para a santidade, sem baixar — por cobardia ou por falta de fé — o horizonte do mandato divino: «sede santos, como o meu Pai celestial é santo» (Mt5, 48). O sacerdote orientará outros nesse caminho para a santidade se ele próprio reconhece esse imperativo e se tem consciência de que Deus pôs nas suas mãos os meios para o alcançar. O grande desafio para o sacerdote consiste em identificar-se com Cristo no exercício do seu ministério sacerdotal, para que muitos outros procurem também esta configuração com o Senhor, no desempenho das suas tarefas habituais.
A identificação com Cristo sacerdote fundamenta-se no dom do sacramento da Ordem, e desenvolve-se na medida em que o sacerdote põe tudo o que é seu nas mãos de Cristo. Isto ocorre de modo paradigmático e excelente durante a celebração da Eucaristia. Na Missa, o sacerdote empresta o seu ser a Cristo para trazer Cristo. S. Josemaria expressava esta verdade com singular vigor:
«Chego ao altar e a primeira coisa que penso é: Josemaria, tu não és Josemaría Escrivá de Balaguer (...): és Cristo (...). É Ele que diz: isto é o meu Corpo, este é o meu Sangue, o que consagra. Senão eu não o poderia fazer. Ali se renova de modo incruento o divino Sacrifício do Calvário. De maneira que estou ali in persona Christi, fazendo as vezes de Cristo»[7].
Esta identificação com o Senhor é um traço essencial da vida espiritual do sacerdote. Como dizia São Gregório Magno, «os que celebramos os mistérios da paixão do Senhor, temos que imitar o que fazemos. E então a hóstia ocupará o nosso lugar diante de Deus, se nos fazemos hóstia nós próprios»[8].
A inteira existência sacerdotal orienta-se para que o próprio eu diminua, para que cresça Cristo no presbítero, ocultar-se, sem procurar protagonismo, para que apareça apenas a eficácia salvadora do Senhor; desaparecer, para que Cristo se faça presente através do exercício abnegado e humilde do ministério. Ocultar-se e desaparecer[9]é uma fórmula que agradava muito a S. Josemaria. Convida, especialmente os sacerdotes, a preferir o sacrifício escondido e silencioso[10] às manifestaçõesaparatosas ou chamativas.
Paradoxalmente, para contrapor à ausência de Deus num mundo secularizado, S. Josemaria propõe aos sacerdotes, não tanto uma forte atividade pública, com a sua correspondente ressonância mediática, mas, simplesmente, ocultar-se e desaparecer. Deste modo, ao desaparecer o "eu" do sacerdote, propagar-se-á a presença de Cristo no mundo, de acordo com a lógica divina que se nos mostra na celebração da Eucaristia.
«Parece-me que aos sacerdotes se nos pede a humildade de aprender a não estar na moda, de ser realmente servos dos servos de Deus – lembrando-nos daquele grito do Baptista: illum oportet crescere, me autem minui (Jo3, 30); convém que Cristo cresça e que eu diminua – para que os cristãos correntes, os leigos, tornem Cristo presente, em todos os ambientes da sociedade. (...). Quem pense que, para que a voz de Cristo se faça ouvir no mundo de hoje, é necessário que o clero fale ou se faça sempre presente, não entendeu ainda bem a dignidade da vocação divina de todos e de cada um dos fiéis cristãos»[11].
A existência sacerdotal consiste em pôr todo o próprio à mercê de Deus, emprestar a voz ao Senhor, para que fale Ele; emprestar-Lhe as mãos, para que atue Ele; emprestar-Lhe o corpo e a alma para que Ele cresça no sacerdote e, através do seu ministério, em cada um dos fiéis cristãos. Ante os desafios do nosso mundo, S. Josemaria ensina aos sacerdotes humildade e abnegação, pôr inteiramente à disposição do Senhor o próprio eu.
2. «Empresto ao Senhor a minha voz».
Familiaridade com a Palavra e disponibilidade para as almas.
A Eucaristia «reúne em si todos os mistérios do Cristianismo. Celebramos, portanto, a ação mais sagrada e transcendente que os homens, pela graça de Deus, podemos realizar nesta vida»[12]. O sacerdote empresta a sua voz ao Senhor, de modo inefável ao pronunciar as palavras da consagração, que permitem que a força de Deus Pai, Filho e Espírito Santo opere o prodígio da transubstanciação. A eficácia dessas palavras não provém do sacerdote mas de Deus. O sacerdote, por si mesmo, não poderia dizer eficazmente "isto é o meu corpo", "este é o cálice do meu sangue": não se operaria a conversão do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo. Isto, que sucede de modo extraordinário durante a celebração eucarística, no momento mais sublime da vida do sacerdote, pode estender-se analogamente a toda a sua vida e ao seu ministério.
A eficácia da palavra do sacerdote — na pregação, na celebração dos sacramentos, na direção espiritual e no trato com as pessoas — provém do mesmo princípio, emprestar a sua voz ao Senhor.
a) Familiaridade com a voz de Deus
Emprestar ao Senhor a própria voz requer confiança com Ele; requer escutar a voz de Deus e incorporá-la na própria vida. Para adquirir essa familiaridade, S. Josemaria indica dois caminhos imprescindíveis, a vida de oração e o estudo. O sacerdote tem de dedicar tempo a estudar e a meditar a Sagrada Escritura e a aprofundar a sua formação teológica, para que ressoe fielmente a voz de Cristo, que fala na Sua Igreja.
«A pregação da palavra de Deus exige vida interior; temos de falar aos outros de coisas santas, ex abundantia enim cordis, os loquitur (Mt12, 34); a boca fala da abundância do coração. E juntamente com a vida interior, estudo: (...) Estudo, doutrina que incorporamos na própria vida, e que só assim saberemos dar aos outros do modo mais conveniente, acomodando-nos às suas necessidades e circunstâncias com dom de línguas»[13].
O povo cristão está sedento da voz de Deus. O sacerdote não pode defraudar esses santos desejos. Neste mundo de hoje, em que abunda a confusão, é necessário que o sacerdote seja porta-voz fiel da Palavra divina; ter vida interior e estudar a doutrina assegura que a pregação não seja eco de outras vozes que não são a de Cristo. Seguir confiadamente o Magistério garante que Cristo seja escutado na Igreja e no mundo. S. Josemaria animava também os sacerdotes a pedir luzes ao Espírito Santo para serem só instrumentos seus, pois é o Paráclito que atua no interior da alma[14]. Emprestar a voz a Deus significa, além disso, que o sacerdote não se prega a si mesmo, mas a Cristo Jesus, Nosso Senhor (cfr. 2 Cor4, 5), fazendo-se eco do Evangelho. Deste modo, a eficácia da pregação provirá do próprio Senhor:
«Das palavras de Jesus Cristo bem expostas, claras, doces e fortes, cheias de luz, pode depender a resolução do problema espiritual de uma alma que vos escuta, desejosa de aprender e de se determinar. A palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes e atinge até a divisão da alma e do corpo, das juntas e medulas(Hb4, 12)» [15].
De alguma maneira, o sacerdote deve aspirar à mesma intimidade com a Palavra de Deus que teve Santa Maria. Bento XVI, a propósito do Magnificat, «completamente tecido pelos fios tomados da Sagrada Escritura», descreve essa familiaridade de Nossa Senhora nos seguintes termos: «Fala e pensa com a Palavra de Deus; a Palavra de Deus converte-se em palavra sua, e a sua palavra nasce da Palavra de Deus. Assim se põe de manifesto, além disso, que os seus pensamentos estão em sintonia com o pensamento de Deus, que o seu querer é um querer com Deus»[16].
O Santo Padre vai mais além, ao salientar que a Virgem, «ao estar intimamente penetrada pela Palavra de Deus, pode converter-se em mãe da Palavra encarnada»[17]. Algo análogo ocorre com o sacerdote. S. Josemaria dizia, referindo-se à Eucaristia que, assim como a Nossa Mãe trouxe uma vez ao mundo a Jesus, «os sacerdotes trazem-n'O à nossa terra, ao nosso corpo e à nossa alma, todos os dias»[18].
Emprestar a voz ao Senhor requer humildade, calar opiniões pessoais em questões de fé, moral e disciplina eclesiástica quando são dissonantes; não se apegar às ideias próprias; procurar a união com desejos de servir. É necessário que o sacerdote fale aos homens de Cristo, lhes comunique a doutrina de Cristo como fruto da própria vida interior e do estudo, com santidade pessoal e conhecimento profundo da vida dos homens e mulheres do seu tempo.
b) Disponibilidade para emprestar a voz ao Senhor
Emprestar a voz ao Senhor requer também disponibilidade. S. Josemaria não se cansou de pedir aos sacerdotes que dedicassem tempo à administração do perdão divino. Para que a voz misericordiosa de Deus chegue às almas através do sacramento da Reconciliação, é necessária uma condição quase óbvia mas fundamental, estar disponível para atender os que se aproximem. Seria um erro pensar que, no nosso mundo, seria uma perda de tempo. Equivaleria a fechara boca de Deus, que deseja perdoar por meio dos seus ministros. S. Josemaria tinha experimentado bem que, quando o sacerdote, com constância, dia após dia, dedica um tempo a essa tarefa, estando fisicamente no confessionário, esse lugar de misericórdia acaba por se encher de penitentes, ainda que ao princípio não vá ninguém. Descrevia assim a um grupo de sacerdotes diocesanos em Portugal, em 1972, o resultado de perseverar nessa tarefa:
«Não vos deixarão viver, nem podereis rezar nada no confessionário, porque as vossas mãos ungidas estarão, como as de Cristo – confundidas com elas, porque sois Cristo – dizendo: eu te absolvo. Amai o confessionário. Amai-o, amai-o!»[19].
S. Josemaria tinha uma fé vivíssima na verdade real de que o sacerdote é Cristo, quando diz: "eu te absolvo". Com grande sentido sobrenatural e com sentido comum, dava conselhos muito práticos, para que a dignidade do sacramento não perdesse o brilho, para que fosse canal limpo da voz de Jesus Cristo. Por isso amava o confessionário. Entendia que, utilizando este tradicional instrumento, se fomentam as disposições adequadas — tanto do penitente como do confessor — para facilitar a sinceridade e o tom sobrenatural próprio de uma realidade sagrada.
«Deus Nosso Senhor conhece bem a minha debilidade e a vossa; todos nós somos homens correntes, mas Jesus Cristo quis converter-nos num canal, que faça chegar a muitas almas as águas da sua misericórdia e do seu Amor »[20].
Falava da administração do sacramento da Penitência como um exercício gostoso e uma paixão dominante do sacerdote. Sem dúvida, as horas diárias dedicadas a confessar, «com caridade, com muita caridade, para escutar, para aconselhar, para perdoar»[21] são parte desse ocultar-se e desaparecer, tão eficaz para fazer Cristo presente nas pessoas e nos ambientes onde vivem.
Ao confessar, o sacerdote – no seu papel de juiz, mestre, médico, pai e pastor – experimenta a necessidade de dar doutrina clara, diante das dificuldades que se apresentam na vida dos penitentes. Consciente disto, S. Josemaria fomentou entre os presbíteros um vivo desejo de conservar e melhorar a ciência eclesiástica, «especialmente a que necessitais para administrar o sacramento da Penitência»[22]. «Procurai – escrevia numa ocasião a sacerdotes – dedicar um tempo do dia – ainda que sejam só uns minutos – ao estudo da ciência eclesiástica»[23]. Com este fim, impulsionou também encontros, convívios, reuniões para os presbíteros, etc.
O renascer da prática da confissão sacramental é um dos grandes desafios do mundo atual, que necessita de redescobrir o sentido do pecado e experimentar a alegria da misericórdia de Deus. O sacerdote, estando disponível para celebrar o sacramento da Reconciliação, e procurando – mediante a oração e o estudo – que as suas ideias estejam em sintonia com a doutrina da Igreja, é absolutamente insubstituível.
Também os fiéis leigos hão-de sentir a responsabilidade de levar os seus colegas, familiares e amigos ao sacerdote, para que possam "escutar a voz de Deus" e receber o seu perdão. A colaboração entre leigos e sacerdotes, neste campo, é especialmente importante na sociedade de hoje.
S. Josemaria entendia que o sacerdote, também na tarefa de direção espiritual, é um instrumento para fazer chegar a voz de Deus às almas; nesta atividade não deve sentir-se nem "proprietário", nem modelo: «O modelo é Jesus Cristo; o modelador, o Espírito Santo, por meio da graça. O sacerdote é o instrumento, e nada mais»[24]. A direção espiritual, outra das paixões dominantesde S. Josemaria, não consiste em mandar, mas em abrir horizontes, assinalar obstáculos, sugerindo os meios para os vencer, e impulsionar para o apostolado. Animar, afinal, a que cada um descubra e queira cumprir o desígnio de santidade que Deus tem para ele.
Isto é possível se o próprio sacerdote está convencido de que conduzir para a busca da santidade é levar as pessoas para a felicidade. Essa persuasão surge da luta do presbítero pela própria santificação, é fruto do amor à vontade de Deus e é necessária para contrapor ao pensamento laicista, que tende a apagar Deus do horizonte da felicidade humana.
3. «Empresto ao Senhor as minhas mãos».
Amor à liturgia e obediência à Igreja.
Na Santa Missa, é Cristo que, através do sacerdote, se oferece ao Pai pelo Espírito Santo. As mãos do presbítero, ungidas durante a cerimónia de ordenação, foram sempre veneradas pelos cristãos, porque trazem Cristo, porque distribuem os tesouros da redenção.
S. Josemaria tinha viva consciência de que a liturgia é ação divina, sagrada, e não ação humana. Se um mundo descristianizado se caracteriza, em boa medida, pela ausência do sagrado, o sacerdote tem hoje o grande desafio de se esmerar no cuidado da liturgia, "emprestando a Deus as suas mãos" e o seu ser inteiro.
Isto significa evitar protagonismos que podem enevoar a ação divina. Também no serviço litúrgico vale a fórmula de S. Josemaria: «Ocultar-se e desaparecer é o meu, que só Jesus brilhe»[25]. Este princípio responde a uma lógica de fé e de visão sobrenatural. Só a partir da fé se entende em profundidade a eficácia sobrenatural que encerra o princípio de "emprestar ao Senhor as minhas mãos"; e se aceitam com gosto as consequências práticas a que conduz: fidelidade à fé e à doutrina católica e obediência delicada às normas litúrgicas:
«Que ponhais sempre um particular empenho em seguir com toda a docilidade o Magistério da Igreja Santa; e, como consequência, que cumprais, com delicada obediência também, todas as indicações da Santa Sé em matéria litúrgica, adaptando-vos com generosidade às possíveis modificações – que serão sempre acidentais – que o Romano Pontífice possa introduzir na lex orandi»[26].
As mãos do sacerdote têm de ser mãos de pessoa enamorada, que sabe tratar com delicadeza as coisas do Senhor e, muito especialmente, tudo o que se relaciona com o culto divino. O descuido de igrejas, altares e objetos de culto transmite inevitavelmente certa sensação de ausência de Deus ou de indiferença. Para enfrentar o mundo materialista, é necessário o cuidado atento de tudo o que se relaciona com a presença sacramental do Senhor na Eucaristia. Numa celebração litúrgica imbuída de espírito de adoração encerra-se uma sóbria beleza, que eleva o espírito para Deus e comunica a presença do sagrado. S. Josemaria viveu sempre com a preocupação de que nunca é demasiada a dignidade do culto:
«Tratai-me bem os objetos de culto; é manifestação de fé, de piedade e dessa nossa bendita pobreza que nos leva a destinar ao culto o melhor de que possamos dispor, obriga-nos por isso mesmo a tratá-lo com a mais fina delicadeza: sancta sancte tractanda!São jóias de Deus. Os cálices sagrados e os santos panos e tudo o resto que pertence à Paixão do Senhor... pelo seu consórcio com o Corpo e o Sangue do Senhor hão-de ser venerados com a mesma reverência que o seu Corpo e o seu Sangue(S. Jerónimo, Epist. 114, 2)» [27].
4. «Empresto ao Senhor o meu corpo e a minha alma: dou-lhe tudo». Sacerdote a cem por cento.
Depois de ter considerado como o sacerdote empresta ao Senhor a sua voz e as suas mãos, chegamos, como num in crescendode identificação com Cristo, a uma formulação omnicompreensiva da identidade sacerdotal: «empresto ao Senhor o meu corpo e a minha alma: dou-Lhe tudo». Esta fórmula, referida à celebração eucarística, na qual o sacerdote atua in personaChristi Capitis, pode estender-se analogamente à vida inteira do sacerdote, constituindo a sua mais íntima aspiração: ser, sempre e em tudo, ipse Christus, o próprio Cristo.
S. Josemaria descrevia com vigor esse sentido de totalidade próprio do sacerdócio. Referindo-se a um grupo de sacerdotes recém ordenados, expressava-o da seguinte maneira: «Receberam o Sacramento da Ordem para ser, nada mais, nada menos, do que sacerdotes-sacerdotes, sacerdotes a cem por cento»[28].
Ao mesmo tempo, é evidente que sempre é indispensável a colaboração entre sacerdotes e leigos, cada um segundo a missão que lhe é própria. Como escrevia S. Josemaria, «esta colaboração apostólica é hoje importantíssima, vital, urgente»[29]. Por um lado, porque os presbíteros, enquanto tais, não têm acesso a muitos ambientes profissionais ou sociais. Por outro, porque os leigos, para serem verdadeiramente "outros Cristos", necessitam da vida sacramental e, portanto, o recurso ao ministério sacerdotal. Sem vida interior, o leigo acabaria por mundanizar-se, em vez de cristianizar o mundo; é necessária uma intensa vida sobrenatural para influir cristãmente em ambientes onde parece ter desaparecido a marca de Deus.
«No exercício do apostolado, os leigos têm absoluta necessidade do sacerdote, quando chegam ao que costumo chamar o muro sacramental, como os sacerdotes – especialmente no meio da indiferença religiosa, quando não se trata além disso de un ataque brutal à Religião, na sociedade destes tempos – têm necessidade dos leigos, para o apostolado»[30].
Esta colaboração é eficaz na medida em que se respeita a própria natureza da vocação de cada um; o leigo deve ser "Cristo" no meio da rua, nas circunstâncias normais que lhe cabe viver, na convivência com os seus iguais, com quem partilha projetos e aspirações. Ao mesmo tempo, o sacerdote tem de ser sempre e inteiramente sacerdote, vivendo para apoiar e alentar a aspiração de santidade de homens e mulheres, com uma abnegada entrega ao seu ministério. Dificilmente haverá leigos que perseverem no empenho de procurar a santidade na vida corrente, sem presbíteros «dedicados integralmente ao seu serviço, que se esqueçam habitualmente de si mesmos, para se preocuparem somente com as almas»[31].
S. Josemaria repetia com frequência que tinha uma só panela para todos, cujo conteúdo é, em síntese, a procura da santidade no meio das ocupações correntes. Dessa panelapodem alimentar-se o pai e a mãe de família, o engenheiro, o advogado, o médico, o operário, e também o sacerdote. E o sacerdote desempenha um papel insubstituível para ajudar os fiéis a ser santos: tem de servir a todos, é sacerdote para os outros. Pela missão que recebeu de Deus, tem uma especial obrigação de procurar a santidade. «Muitas coisas grandes dependem do sacerdote: temos Deus, trazemos Deus, damos Deus»[32].
Por isso o fundador do Opus Dei falava de ser sacerdote cem por cento, que é a consequência de tornar vida própria o que acontece na Santa Missa: emprestar ao Senhor o corpo e a alma; dar-Lhe tudo. Significa também que o sacerdócio não é um ofício, nem uma tarefa que ocupa parcialmente o dia, juntamente com outras ocupações. Para S. Josemaria não há âmbitos da existência pessoal que não sejam sacerdotais; até nas situações aparentemente mais intranscendentes, ou nas ocupações profanas, o sacerdote é sempre sacerdote, tomado de entre os homens, constituído a favor dos homens (cfr. Hb5, 1).
Plenamente congruente com esse "emprestar ao Senhor o meu corpo" é o dom do celibato sacerdotal. No meio do mundo, que facilmente tende a banalizar a dignidade do corpo, tem um especial significado entregar totalmente o corpo a Nosso Senhor Jesus Cristo na celebração eucarística. O celibato de Jesus Cristo ilumina com todo o seu vigor e resplendor o celibato do sacerdote. Cristo, nos seus anos de existência terrena e na vida da sua Igreja, demonstrou a que grau extraordinário de paternidade e maternidade, de caridade sem limites, se chega por este dom.
Ao longo da sua grande experiência pastoral, S. Josemaria experimentou continuamente a necessidade de uma identidade sacerdotal forte; não é verdade que os cristãos queiram ver no sacerdote um homem mais; o povo cristão, o que quer do sacerdote é que seja sacerdote. Na sociedade atual, onde não poucos pretendem esfumar Deus, os cristãos necessitam, com mais razão ainda, de se aperceber da presença de Cristo no sacerdote; necessitam e esperam, com palavras de S. Josemaria, «que se destaque claramente o caráter sacerdotal; esperam que o sacerdote reze, que não se negue a administrar os Sacramentos, que esteja disposto a acolher a todos sem se constituir em chefe ou militante de facções humanas, sejam do tipo que forem; que ponha amor e devoção na celebração da Santa Missa, que se sente no confessionário, que console os doentes e os aflitos; que doutrine com a catequese as crianças e os adultos, que pregue a Palavra de Deus e não qualquer tipo de ciência humana que – mesmo que a conhecesse perfeitamente – não seria a ciência que salva e leva à vida eterna; que tenha conselho e caridade com os necessitados. Numa palavra: pede-se ao sacerdote que aprenda a não estorvar a presença de Cristo nele»[33].
* * *
Esta última frase pode talvez resumir o desafio que o mundo atual lança aos ministros sagrados. O sacerdote tem de fazer presente Deus aos homens de todos os tempos; e para isso, tem de aprender a emprestar a Cristo a sua voz, as suas mãos, a sua alma e o seu corpo: todo o seu ser. Assim sucede principalmente quando administra os sacramentos ou na pregação, mas não só nesses momentos. A dinâmica própria do sacramento da Ordem, cujo centro e cume é a Eucaristia, leva a dar-se inteiramente, ao longo do dia, em alma e corpo, a Cristo.
A vida terrena de Santa Maria, Mãe de Cristo, Sacerdote Eterno, e Mãe dos sacerdotes, foi um «faça-se sincero, entregue, cumprido até às últimas consequências, que não se manifestou em ações aparatosas, mas no sacrifício escondido e silencioso de cada dia»[34]. Em Nossa Senhora demonstra-se a eficácia desta atitude. Por isso Maria, permanentemente, continua a fazer presente Deus nas casas, nas ruas. A Mãe de Deus é, muitas vezes, o último reduto de fé, do qual, não poucas vezes, brota de novo a conversão e a descoberta da alegria da vida cristã no meio do mundo.
+ Javier Echevarría
Prelado do Opus Dei
Publicado originalmente em clerus.org (2009)
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[1] João Paulo II, Discurso ao Simpósio de Bispos europeus,11-X-1985.
[2] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Caminho, n. 301.
[3] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Cristo que passa, n. 183.
[4] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Sulco, n. 428.
[5] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Apontamentos tomados de uma reunião familiar, 10-V-1974, citado em J. Echevarría, Por Cristo, con Él y en Él, Ed. Palabra, Madrid 2007, p. 167.
[6] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Homilia Sacerdote para a eternidade, 13-IV-1973.
[7] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Apontamentos tomados..., cit.
[8] São Gregório Magno, Lib.Dialogorum, 4, 59, citado em S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 8-VIII-1956, n. 17.
[9] Cfr. S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Caminho, edición crítico-histórica preparada por P. Rodríguez, 3ª edição, Rialp, Madrid 2004, p. 945.
[10] Cfr. S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Caminho, n. 185.
[11] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Temas actuais do cristianismo, n. 59.
[12] Ibid., n. 113.
[13] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 8-VIII-1956, n. 25.
[14] Cfr. São Tomás, S. Th. II-II, q. 177, a. 1 c.
[15] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 8-VIII-1956, n. 26.
[16] Bento XVI, Carta encíclica Deus caritas est, n. 41.
[17] Ibid.
[18] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Homilía Sacerdote para a eternidad, 13-IV-1973.
[19] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Apontamentos tomados numa reunião com sacerdotes diocesanos em Enxomil (Porto),10-V-1974.
[20] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 8-VIII-1956, n. 1.
[21] Ibid., n. 30.
[22] Ibid., n. 15.
[23] Ibid.
[24] Ibid., n. 37.
[25] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta por ocasião das bodas de ouro sacerdotais, 28-I-1975.
[26] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 8-VIII-1956, n. 22.
[27] Ibid., n. 23.
[28] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Homilia Sacerdote para a eternidade, 13-IV-1973.
[29] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Carta 8-VIII-1956, n. 3.
[30] Ibid.
[31] Ibid.
[32] Ibid., n. 17.
[33] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Homilia Sacerdote para a eternidade, 13-IV-1973.
[34] S. Josemaria Escrivá de Balaguer, Cristo que passa, n. 172.