O tempo de uma presença (4): Semana Santa, amou-nos até ao fim

A Semana Santa é o centro do ano litúrgico: revivemos nestes dias os momentos decisivos da nossa redenção. A Igreja leva-nos pela mão, com a sua sabedoria e a sua criatividade, do Domingo de Ramos até à Cruz e à Ressurreição.

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No coração do ano litúrgico palpita o Mistério pascal, o Tríduo do Senhor crucificado, morto e ressuscitado. Toda a história da salvação gira à volta destes dias santos, que passaram despercebidos para a maioria das pessoas, e que agora a Igreja celebra «de um extremo ao outro da terra»[1]. Todo o ano litúrgico, resumo da história de Deus com os homens, surge da memória que a Igreja conserva da hora de Jesus: quando, «tendo Ele amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim»[2].

Muitos dos ritos que vivemos nos dias de hoje têm as suas raízes em tradições muito antigas; a sua força está realçada pela piedade dos cristãos e pela fé dos santos de dois milénios.

A Igreja difunde nestes dias a sua sabedoria maternal para nos introduzir nos momentos decisivos da nossa redenção. Se não oferecermos resistência, seremos impelidos: pelo recolhimento com que a liturgia da Semana Santa nos introduz na Paixão; pela unção que nos move a velar junto do Senhor; pela explosão de alegria que brota da Vigília da Ressurreição. Muitos dos ritos que vivemos nos dias de hoje têm as suas raízes em tradições muito antigas; a sua força está realçada pela piedade dos cristãos e pela fé dos santos de dois milénios.

O Domingo de Ramos

O Domingo de Ramos é como o pórtico que precede e aponta para o Tríduo Pascal: «este início da Semana Santa, já tão próximo do momento em que se consumou no Calvário a Redenção de toda a humanidade, parece-me um tempo particularmente apropriado para tu e eu considerarmos por que caminhos nos salvou Jesus, Nosso Senhor; para contemplarmos esse seu amor, verdadeiramente inefável, por umas pobres criaturas formadas com barro da terra»[3].

Quando os primeiros fiéis escutavam a proclamação litúrgica dos relatos Evangélicos da Paixão e a homilia que pronunciava o bispo, sabiam que era uma situação muito diferente daquela em que se assiste a uma simples representação: «para os seus corações piedosos, não havia diferença entre escutar o que havia sido proclamado e ver o que havia sucedido»[4]. Nos relatos da Paixão, a entrada de Jesus em Jerusalém é como que a apresentação oficial que o Senhor faz de Si mesmo como o Messias desejado e esperado, fora do qual não há salvação. O seu gesto é o do Rei salvador que chega a sua casa. Do seu povo, alguns não O receberam, mas outros sim, saúdam-n'O como o Bendito que vem em nome do Senhor[5].

O Senhor, sempre presente e atuante na Igreja, atualiza na liturgia, ano após ano, esta solene entrada no «Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor», como é chamado no Missal. O seu próprio nome sugere uma duplicação de elementos: uns triunfais, outros dolorosos. «Neste dia – lê-se na rubrica – a Igreja comemora a entrada do Senhor Jesus Cristo em Jerusalém, para realizar o Seu mistério pascal»[6]. A sua chegada está rodeada de aclamações e gritos de júbilo, ainda que as multidões não saibam então para onde se dirige realmente Jesus, e em breve se encontrarão com o escândalo da Cruz. Nós, no entanto, no tempo da Igreja, sim, sabemos qual é a direção dos passos do Senhor: Ele entra em Jerusalém «para consumar o seu mistério pascal». Por isso, para o cristão que aclama Jesus como Messias na procissão de Domingo de Ramos, não é uma surpresa encontrar-se, sem qualquer interrupção, com a vertente dolorosa dos sofrimentos do Senhor.

O modo como a liturgia nos mostra este jogo de trevas e de luz no plano divino, é significativo: o Domingo de Ramos não junta duas celebrações independentes, justapostas. O rito de entrada da Missa não é senão a própria procissão, e esta conflui diretamente na coleta da Missa. «Deus eterno e omnipotente, que para dar aos homens um exemplo de humildade quisestes – dirigimo-nos ao Pai – que o nosso Salvador Se fizesse homem e padecesse o suplício da cruz»[7]: aqui já tudo fala do que vai acontecer nos dias seguintes.

Quinta-feira Santa

O Tríduo Pascal começa com a Missa vespertina da Ceia do Senhor. A Quinta-feira Santa encontra-se entre a Quaresma que termina e o Tríduo que começa. O fio condutor de toda a celebração deste dia, a luz que tudo envolve, é o Mistério pascal de Cristo, o próprio coração do acontecimento que se atualiza nos sinais sacramentais.

A ação sagrada centra-se naquela Ceia, em que Jesus, antes de se entregar à morte, confiou à Igreja o testemunho do seu amor, o Sacrifício da Aliança eterna[8].

Uma antiga tradição guarda para este dia a proclamação da Paixão segundo S. João, na qual aparece a impressionante majestade de Cristo que se entrega «à morte com a plena liberdade do Amor» (S. Josemaria).

«Enquanto instituía a Eucaristia, como memorial perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este ato supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte da misericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amor que se realizaria na cruz»[9]. A liturgia introduz-nos de um modo vivo e atual no mistério da entrega de Jesus pela nossa salvação. «É por isso que o Pai Me ama: porque dou a minha vida. E assim, Eu recebo-a de novo. Ninguém me tira a vida, mas Eu a dou livremente»[10]. O fiat do Senhor que dá origem à nossa salvação torna-se presente na celebração da Igreja; por isso a Coleta não vacila em incluir-nos, no dia de hoje, na Última Ceia: «Sacratissimam, Deus, frequentantibus Cenam...», diz em latim, com a sua habitual capacidade de síntese; «Fomos hoje convocados por Vós, para celebrar aquela mesma Ceia memorável»[11].

Este é «o dia santíssimo em que Nosso Senhor Jesus Cristo Se entregou por nós à morte»[12]. As palavras de Jesus, «Eu vou, mas voltarei a vós e é bom para vós que Eu vá, porque se Eu não for, o Defensor não virá a vós»[13] introduzem-nos no misterioso movimento entre a ausência e a presença do Senhor que preside todo o Tríduo Pascal e, a partir dele, toda a vida da Igreja. Por isso, a Quinta-feira Santa, e os dias que se seguem, não são meros dias de tristeza ou de luto. Ver o Tríduo Sagrado deste modo, equivaleria a retroceder à situação dos discípulos, antes da Ressurreição. «A alegria da Quinta-Feira Santa parte, portanto, do facto de nós compreendermos que o Criador se desfez em carinho pelas suas criaturas»[14]. Para perpetuar no mundo este afeto infinito que se concentra na Sua Páscoa, na passagem deste mundo para o Pai, Jesus entrega-Se-nos totalmente, com o seu Corpo e o seu Sangue, num novo memorial: o pão e o vinho, que se convertem no «pão da vida» e «vinho da salvação»[15]. O Senhor ordena que, futuramente, se faça o mesmo que acaba de fazer em sua memória[16], e nasce assim a Páscoa da Igreja, a Eucaristia.

Há dois momentos da celebração que são muito eloquentes, se os vemos na sua mútua relação: o lava-pés e a reserva do Santíssimo Sacramento. Lavar os pés aos Doze anuncia, poucas horas antes da crucificação, o maior amor: «dar a vida pelos seus amigos»[17]. A liturgia revive este gesto, que surpreendeu os Apóstolos, no anúncio do Evangelho e na possibilidade de lavar os pés de alguns fiéis. Ao concluir a Missa, a procissão para a reserva do Santíssimo Sacramento e a adoração dos fiéis revela a resposta amorosa da Igreja àquele inclinar-se humilde do Senhor sobre os pés dos Apóstolos. O momento de oração silenciosa, que entra pela noite, convida a recordar a oração sacerdotal de Jesus no Cenáculo[18].

Sexta-feira Santa

A liturgia de Sexta-feira Santa começa com a prostração dos sacerdotes, em vez do habitual beijo inicial ao altar. É um gesto de especial veneração ao altar, que se encontra desguarnecido, sem nada, evocando o Crucificado na hora da Paixão. Rompe o silêncio, uma terna oração em que o celebrante suplica as misericórdias de Deus – «Reminiscere miserationum tuarum, Domine» – e pede ao Pai a proteção eterna que o Filho nos ganhou com o seu sangue, isto é, dando a Sua vida por nós[19].

Uma antiga tradição guarda para este dia a proclamação da Paixão segundo S. João, como um momento culminante da liturgia da Palavra. Neste relato evangélico aparece a impressionante majestade de Cristo que se entrega «à morte com a plena liberdade do Amor»[20]. O Senhor responde com valentia aos que vêm prendê-Lo: «Quando Jesus disse “Sou eu”, eles recuaram e caíram por terra»[21]. Mais tarde ouvimo-Lo responder a Pilatos: «O meu reino não é deste mundo»[22], e, por isso, o seu exército não luta para O libertar. «Consummatum est»[23]: o Senhor leva até ao fim a fidelidade ao seu Pai, e assim vence o mundo[24].

Depois do anúncio da Paixão e da oração universal, a liturgia volta sua atenção para o Lignum Crucis, a árvore da Cruz: o glorioso instrumento da redenção humana. A adoração da Santa Cruz é um gesto de fé e uma proclamação da vitória de Jesus sobre o demónio, o pecado e a morte. Com Ele, nós, os cristãos, vencemos, porque «esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé»[25].

A Igreja envolve a Cruz de honra e reverência: o Bispo aproxima-se para a beijar sem casula e sem anel[26]; depois dele, segue-se a adoração dos fiéis, enquanto os cânticos celebram o seu caráter vitorioso, «adoramos, Senhor, a Vossa Cruz, louvamos e glorificamos a Vossa santa Ressurreição; porque pela Cruz se alegrou o universo inteiro»[27]. É uma misteriosa união da morte e da vida em que Deus quer que aprofundemos: «umas vezes, renovamos o gozoso impulso que levou o Senhor a Jerusalém. Outras, a dor da agonia que culminou no Calvário... Ou a glória do Seu triunfo sobre a morte e o pecado. Mas, sempre, o amor - gozoso, doloroso, glorioso - do Coração de Jesus Cristo»[28].

O Sábado Santo e a Vigília pascal

O Sábado santo é o dia da espera da Ressurreição, intensamente vivido pela Mãe de Jesus, donde provém a devoção da Igreja a Santa Maria nos sábados.

Um texto anónimo da antiguidade cristã recolhe, como que condensado, o mistério que a Igreja comemora no Sábado Santo: a descida de Cristo aos infernos. «O que está a suceder hoje? Um grande silêncio envolve a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei dorme. A terra está amedrontada e espantada, porque Deus adormeceu na carne e despertou os que dormiam desde os tempos antigos»[29]. Do mesmo modo que vemos Deus descansar no Génesis, no final da sua obra criadora, o Senhor descansa agora da sua fadiga redentora. E a Páscoa, que está para surgir definitivamente no mundo, é «a festa da nova criação»[30]: ao Senhor custou-Lhe a vida devolver-nos a Vida.

A Vigília Pascal expressa, numa grande variedade de elementos simbólicos, a passagem das trevas à luz, da morte à vida nova na Ressurreição do Senhor: o fogo, o círio, a água, o incenso, a música e os sinos...

«Um pouco de tempo, e não mais Me vereis; e mais um pouco, e Me vereis de novo»[31]: assim diz o Senhor aos Apóstolos, na véspera da sua Paixão. Enquanto esperamos o seu regresso, meditamos na sua descida às trevas da morte, onde estavam ainda submersos os justos da antiga Aliança. Cristo, levando na sua mão o sinal libertador da Cruz, põe fim ao seu sono e introdu-los na luz do novo Reino: «Desperta, tu que dormes, porque não te criei para que permaneças cativo no abismo»[32]. Desde as abadias carolíngias do século VIII, se propagará pela Europa a comemoração deste grande Sábado, dia da espera da Ressurreição, intensamente vivido pela Mãe de Jesus, donde provém a devoção da Igreja a Santa Maria nos sábados; agora, mais do que nunca, Ela é a Stella matutina[33], a Estrela da Manhã que anuncia a chegada do Senhor: o Lucifer matutinus[34], o Sol nascente, oriens ex alto[35].

Na noite deste grande Sábado, a Igreja reúne-se na mais solene das suas vigílias para celebrar a Ressurreição do Esposo, mesmo até às primeiras horas da aurora. Esta celebração é o núcleo do culto fundamental da liturgia cristã ao longo de todo o ano. Uma grande variedade de elementos simbólicos expressa a passagem das trevas à luz, da morte à vida nova na Ressurreição do Senhor: o fogo, o círio, a água, o incenso, a música e os sinos...

A luz do círio é sinal de Cristo, luz do mundo, que irradia e inunda tudo. O fogo é o Espírito Santo aceso por Cristo nos corações dos fiéis. A água significa a passagem para a nova vida em Cristo, fonte de vida. O aleluia pascal é o hino dos peregrinos a caminho da Jerusalém celeste. O pão e o vinho da Eucaristia são penhor do banquete escatológico com o Ressuscitado. Enquanto participamos na Vigília pascal, reconhecemos com os olhos da fé que a assembleia santa é a comunidade do Ressuscitado; que o tempo é um tempo novo, aberto ao hoje definitivo de Cristo glorioso: «haec est dies, quam fecit Dominus»[36], este é o novo dia que inaugurou o Senhor, o dia «que não conhece ocaso»[37].


[1] Missal Romano, Oração Eucarística III.

[2] Jo 13, 1.

[3] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 110.

[4] S. Leão Magno, Sermo de Passione Domini 52, 1 (CCL 138, 307).

[5] cf. Mt 21, 9.

[6] Missal Romano, Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, n. 1.

[7] Missal Romano, Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, Coleta.

[8] cf. Missal Romano, Missa vespertina da Ceia do Senhor, Quinta-feira Santa, Coleta.

[9] Francisco, Misericordiae Vultus, n. 7.

[10] Jo 10, 17-18.

[11] Missal Romano, Missa vespertina da Ceia do Senhor, Quinta-feira Santa, Coleta.

[12] Missal Romano, Missa vespertina da Ceia do Senhor, Quinta-feira Santa, Communicantes próprio.

[13] Jo 14, 28; Jo 16, 7.

[14] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 84.

[15] Missal Romano, ofertório.

[16] cf. 1Cor 11, 23-25.

[17] cf. Jo 15, 13.

[18] cf. Jo 17.

[19] cf. Missal Romano, Celebração da Paixão do Senhor, Sexta-feira Santa, oração inicial.

[20] S. Josemaria, Via Sacra, X estação.

[21] Jo 18, 6.

[22] Jo 18, 36.

[23] Jo 19, 30.

[24] cf. Jo 16, 33.

[25] 1 Jo 5, 4.

[26] cf. Cerimonial dos bispos, nn. 315-322.

[27] Missal Romano, Celebração da Paixão do Senhor, Sexta-feira Santa, n. 20.

[28] S. Josemaria, Via Sacra, XIV estação, n. 3.

[29] Homilia sobre o grande e santo Sábado (PG 43, 439).

[30] Bento XVI, Homilia na Vigília Pascal, 7-IV-2012.

[31] Jo 16, 16.

[32] Homilia sobre o grande e santo Sábado (PG 43, 462).

[33] Ladainha Lauretana (cf. Sir 50, 6).

[34] Missal Romano, Vigília Pascal, Precónio Pascal.

[35] Liturgia das Horas, Hino Benedictus (Lc 1, 78).

[36] Sl 117[118], 24.

[37] cf. Missal Romano, Vigília Pascal, Precónio Pascal.

Felix María Arocena