O tempo de uma presença (3): Quaresma, caminho para a Páscoa

A Igreja convida-nos durante a Quaresma a que consideremos na nossa oração a necessidade de nos convertermos, de redirigir os nossos passos para o Senhor. Texto sobre a Quaresma, pertencente ao ciclo sobre o Ano litúrgico.

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«Fazei que a nossa vida, Senhor, corresponda à oferta das nossas mãos, com a qual damos início à celebração do tempo santo da Quaresma»[1]. desde o primeiro domingo da Quaresma que a liturgia traça com decisão o caráter dos quarenta dias que começam na quarta-feira de cinzas. A Quaresma é um compêndio da nossa vida, que é toda ela «um constante regressar à casa do nosso Pai»[2]. É um caminho para a Páscoa, para a morte e ressurreição do Senhor, que é o centro de gravidade da história do mundo, de cada mulher, de cada homem: um regressar ao Amor eterno.

No tempo da Quaresma, a Igreja desperta-nos de novo para a necessidade de renovar o nosso coração e as nossas obras, de modo que descubramos cada vez mais essa centralidade do mistério pascal; trata-se de que nos ponhamos nas mãos de Deus para «avançar na inteligência do mistério de Cristo e vivê-lo na sua plenitude»[3].

«Que capacidade tão estranha tem o homem para se esquecer das coisas mais maravilhosas, para se acostumar ao mistério! Consideremos de novo, nesta Quaresma, que o cristão não pode ser superficial. Estando plenamente metido no seu trabalho habitual (…) tem de estar, ao mesmo tempo, metido totalmente em Deus, porque é filho de Deus»[4]. Por isso, é lógico que durante estes dias consideremos na nossa oração a necessidade da conversão, de redirigir os nossos passos para o Senhor, e purificar o nosso coração fazendo próprios os sentimentos do salmista: «Cor mundum crea in me, Deus, et spiritum firmum innova in visceribus meis; Cria em mim, meu Deus, um coração puro e renova no meu interior um espírito firme»[5]. São palavras do salmo Miserere, que a Igreja nos propõe com frequência neste tempo litúrgico e que S. Josemaria tanto rezou.

O caminho de Israel pelo deserto

A Quaresma mergulha as suas raízes profundas em vários episódios chave da história da Salvação, que é também a nossa história. Um deles é a travessia do deserto pelo povo eleito. Esses quarenta anos foram para os israelitas um tempo de prova e de tentações. Yahvé acompanhava-os continuamente e ia-lhe fazendo entender que só se deviam apoiar n’Ele: ia amolecendo o seu duro coração de pedra[6]. Foi, além disso, um tempo de graças constantes; embora o povo sofresse, era Deus quem os consolava e os orientava com a palavra de Moisés, alimentava-os com o maná e as codornizes, dava-lhes água na Rocha de Meribá[7].

A Quaresma é um caminho para a Páscoa, para a morte e ressurreição do Senhor, que é o centro de gravidade da história do mundo.

Que próximas nos soam as as palavras, cheias de ternura, com que Deus faz repensar os israelitas sobre o sentido da sua longa travessia! «Deves recordar todo o caminho que o Senhor, teu Deus, te fez percorrer pelo deserto durante estes quarenta anos, para te fazer humilde, para te provar e conhecer o que há no teu coração, se guardas ou não os seus mandamentos. Humilhou-te e fez-te passar fome. Depois alimentou-te com o maná, que tu e os teus pais desconheciam, para te ensinar que nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus»[8]. O Senhor dirige-nos também hoje estas palavras; a nós que, no deserto da nossa vida, certamente experimentamos a fadiga e os problemas de cada dia, embora não nos faltem os cuidados paternais de Deus, por vezes através da ajuda desinteressada dos nossos familiares, de amigos ou mesmo de pessoas de boa vontade que permanecem anónimas. Com a sua pedagogia inefável, o Senhor vai-nos metendo no seu coração, que é a verdadeira terra prometida: «Praebe, fili mi, cor tuum mihi… Dá-me, filho, o teu coração e que os teus olhos guardem os meus caminhos»[9].

Muitos dos episódios do Êxodo eram sombra de realidades futuras. De facto, nem todos os que participaram naquela primeira peregrinação chegaram a entrar na terra prometida[10]. Por isso, a epístola aos Hebreus, citando o salmo 94, dói-se da rebeldia do povo e, ao mesmo tempo, celebra a chegada de um novo êxodo: «Os primeiros a receber a boa nova não entraram por causa da sua desobediência», e Deus «volta a fixar um dia, hoje, quando afirma por David ao fim de tanto tempo (…): Se hoje escutardes a sua voz, não endureçais os vossos corações»[11]. Esse hoje é o inaugurado por Jesus Cristo. Com a sua Encarnação, a sua vida e a sua glorificação, o Senhor conduz-nos pelo êxodo definitivo, em que as promessas encontram perfeito cumprimento: arranja-nos um lugar no Céu; consegue «um tempo de descanso para o povo de Deus. Porque quem entra no descanso de Deus, descansa também ele dos seus trabalhos»[12].

O caminho de Cristo pelo deserto

O Evangelho do primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos Jesus que, em solidariedade connosco, quis ser tentado no final dos quarenta dias que passou no deserto. Ver a sua vitória sobre Satanás enche-nos de esperança e faz-nos saber que com Ele poderemos vencer também nas batalhas da vida interior. As nossas tentações, então, já não nos inquietam, antes se convertem em ocasião para nos conhecermos melhor e para nos fiarmos mais de Deus. Descobrimos que o ideal de uma vida acomodada é uma falsa imagem da autêntica felicidade e apercebemo-nos, com S. Josemaría, de que «é necessário, sem dúvida, uma nova mudança, uma lealdade mais plena, uma humildade mais profunda, de modo que, diminuindo o nosso egoísmo, cresça Cristo em nós, já que illum oportet crescere, me autem minui, é preciso que Ele cresça e que eu diminua (Jo 3, 30)»[13].

A experiência da nossa fragilidade pessoal não acaba no temor, mas na petição humilde que atualiza a nossa fé, a nossa esperança e o nosso amor: «Afasta, Senhor, de mim o que me afaste de ti» podemos dizer, com palavras que repetiu com frequência S. Josemaria[14]. Com Jesus, encontramos as forças para recusar decididamente a tentação, sem ceder ao diálogo: «Reparai bem como Jesus responde. Ele não dialoga com Satanás, como tinha feito Eva no paraíso terreal. Jesus (...) escolhe refugiar-se na Palavra de Deus e responde com a força dessa Palavra. Lembremo-nos disto, no momento da tentação, das nossas tentações, nada de diálogo com Satanás, antes sempre defendidos pela Palavra de Deus. E isto nos salvará»[15].

Com a sua pedagogia inefável, o Senhor vai-nos metendo no seu coração, que é a verdadeira terra prometida: "Dá-me, filho, o teu coração e que os teus olhos guardem os meus caminhos".

O relato da Transfiguração do Senhor, que se proclama no segundo domingo da Quaresma, reafirma-nos nesta convicção da certeza da vitória, apesar das nossas limitações. Também nós participaremos da sua glória, se nos sabemos unir à sua Cruz na nossa vida quotidiana. Para isso, temos de alimentar a nossa fé, como aquelas personagens do Evangelho que de três em três anos nos apresenta a liturgia nos últimos domingos da Quaresma: a samaritana, que supera o pecado para reconhecer em Jesus o Messias que acalma, com a água viva do Espírito Santo, a sua sede de amor[16]; o cego de nascimento, que vê Cristo como luz do mundo, vencendo a ignorância, enquanto os videntes do mundo ficam cegos[17]; Lázaro, cuja ressurreição nos recorda que Jesus veio trazer-nos uma vida nova[18]. Contemplando estes relatos como um personagem mais, com a ajuda dos santos, encontraremos recursos para a nossa oração pessoal, e fortalecer-se-á uma presença de Deus mais intensa que procuraremos manter nestes dias.

O nosso caminho penitencial como filhos

A oração colecta do terceiro domingo da Quaresma apresenta o sentido penitencial deste tempo: «Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos fizestes encontrar no jejum, na oração e no amor fraterno os remédios do pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo que, abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa misericórdia». Com a humildade de quem se reconhece pecador, pedimos com toda a Igreja a intervenção que esperamos da misericórdia de Deus Pai: um olhar amoroso sobre a nossa vida e o seu perdão reparador.

A liturgia impulsiona-nos a assumir a nossa parte no processo de conversão, ao convidar-nos para a prática das tradicionais obras penitenciais. Estas manifestam uma mudança de atitude na nossa relação com Deus (oração), com os outros (esmola) e connosco mesmos (jejum)[19]. É o «espírito de penitência», de que falava S. Josemaria, e de que propunha tantos exemplos práticos: «penitência é o cumprimento exato do horário (…). És penitente quando te sujeitas amorosamente ao teu plano de oração, apesar de estares cansado, sem vontade, ou frio. Penitência é tratar sempre os outros com a máxima caridade (…), suportar com bom humor as mil pequenas contrariedades do dia (…); comer com agradecimento o que nos servem, sem importunar com caprichos»[20].

Sabemos ao mesmo tempo que de nada contam as ações meramente externas sem a graça de Deus; não é possível identificar-nos com Cristo sem a sua ajuda: «quia tibi sine te placere non possumus, já que sem a tua ajuda não podemos agradar-Te»[21]. Apoiado n’Ele, procuramos realizar estas obras «no oculto», onde só o nosso Pai Deus vê[22], retificando com frequência a intenção e procurando de modo mais claro a glória de Deus e a salvação de todos. Escreve o apóstolo João: «O que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê»[23]. São palavras que convidam a um exame profundo, porque não é possível separar ambos os aspetos da caridade. Se nos sabemos contemplados por Ele, o sentido da nossa filiação divina irá empapando a vida interior e o apostolado, com uma contrição mais confiada e filial e com uma entrega sincera aos que nos rodeiam, familiares, colegas de trabalho, amigos.

O caminho penitencial através dos sacramentos

Na nossa luta diária contra a desordem do pecado, os sacramentos da Penitência e da Eucaristia são também uns momentos privilegiados. É lógico que a nossa penitência interior se aperfeiçoe graças à celebração do sacramento da Confissão. Muito depende das disposições do penitente, embora o protagonismo seja de Deus, que nos move à conversão. Através deste sacramento – verdadeira obra prima do Senhor[24] – percebemos o seu bom fazer com a nossa liberdade caída. S. Josemaria apresentava assim o papel que nos cabe a nós: «Aconselho a todos que tenham como devoção (…) fazer muitos atos de contrição. E uma manifestação externa, prática, dessa devoção é ter um carinho particular ao Santo Sacramento da Penitência»[25], em que «nos revestimos de Jesus Cristo e dos seus merecimentos»[26].

A Quaresma é um momento estupendo para fomentar este «carinho particular» pela Confissão, vivendo-a nós em primeiro lugar e dando-a a conhecer a muitas pessoas.

Depois da absolvição que o sacerdote dá em nome de Deus, o Ritual propõe, entre outras possíveis, uma bela oração de despedida do penitente: «A paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, a intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria e de todos os santos, o bem que fizeres e o mal de que possas padecer, te sirvam como remédio dos teus pecados, aumento da graça e prémio de vida eterna. Vai em paz»[27]. É uma antiga oração em que o sacerdote pede a Deus que estenda o fruto do sacramento a toda a vida do penitente, recordando de que fonte emana a sua eficácia: os méritos da Vítima inocente e de todos os Santos.

Penitência é tratar sempre os outros com a máxima caridade, suportar com bom humor as mil pequenas contrariedades do dia, comer com agradecimento o que nos servem, sem importunar com caprichos (S. Josemaria)

Como aconteceu ao filho mais novo da parábola, depois do abraço do nosso Pai Deus somos admitidos ao banquete[28]. Que alegria participar bem limpos na Eucaristia! «Ama muito Nosso Senhor. Guarda e fomenta na tua alma esta urgência de lhe querer bem. Ama a Deus, precisamente agora, que talvez bastantes dos que o têm nas suas mãos, não o amam, maltratam-no e não cuidam dele. Trata muito bem o Senhor, na Santa Missa e durante o dia inteiro!»[29].

Através da liturgia, a Igreja convida-nos a percorrer com garbo o caminho da Quaresma. A celebração frequente dos sacramentos, a meditação assídua da Palavra de Deus e as obras penitenciais, sem que falte essa alegria – Laetare Ierusalem! – que sublinha especialmente o quarto domingo[30], são práticas que afinam a nossa alma, e nos preparam para participar com intensidade na Semana Santa, onde reviveremos os momentos cume da existência de Jesus na terra. «Temos de fazer vida nossa a vida e a morte de Cristo. Morrer pela mortificação e a penitência, para que Cristo viva em nós pelo Amor. E seguir, então, as pisadas de Cristo, com ânsia de co-redimir todas as almas. Dar a vida pelos outros. Só assim se vive a vida de Jesus e nos fazemos uma só coisa com Ele»[31]. Contemplando o Senhor que dá a vida por nós, bem purificados dos nossos pecados, redescobriremos a alegria da salvação que Deus nos traz: «Redde mihi laetitiam salutaris tui, devolve-me a alegria da Tua salvação»[32].

Alfonso Berlanga


[1] Missal Romano, Domingo I da Quaresma, oração sobre as oferendas.

[2] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 64.

[3] Missal Romano, Domingo I da Quaresma, colecta.

[4] Cristo que passa, n. 65.

[5] Sl 50, 12.

[6] cf. Dt 8, 2-5.

[7] cf. Ex 15, 22 - 17, 7.

[8] Dt 8, 2-3.

[9] Pr 23, 26.

[10] cf. Nm 14, 20 ss.

[11] Hb 4, 6-7; cf. Sl 94 (95), 7-8.

[12] Hb 4, 9-10.

[13] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 58.

[14] Notas de uma reunião familiar, 18/10/1972 (citado em A. Sastre Tempo de Caminhar, Rialp, Madrid 1989, p. 353).

[15] Francisco, Angelus, 09/03/2014.

[16] Jo 4, 5-42 (Leccionário, terceiro domingo da Quaresma, ciclo A).

[17] Jo 9, 1-41 (Ibidem, quarto domingo da Quaresma, ciclo A).

[18] Jo 11, 1-45 (Ibidem, quinto domingo de Quaresma, ciclo A).

[19] cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1434.

[20] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 138.

[21] Missal Romano, Sábado da IV Semana de Quaresma, Colecta.

[22] cf. Mt 6, 6.

[23] 1Jo 4, 20.

[24] cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1116.

[25] Apontamentos da pregação, 26/04/1970 (citado em J. López e E. Burkhart, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de San Josemaría, Rialp, Madrid 2013, vol. III, p. 377).

[26] S. Josemaria, Caminho, n. 310.

[27] Ritual da Penitência, n. 104.

[28] cf. Lc 15, 22-24.

[29] S. Josemaria, Forja, n. 438.

[30] Missal Romano, IV Domingo da Quaresma, antífona de entrada (cfr. Is 66, 10).

[31] S. Josemaria, Via-sacra, XIV estação.

[32] Sl 50, 14.

Alfonso Berlanga