O tempo de uma presença (10): A música que vem de Deus, canto e música na liturgia

A música teve sempre um lugar central na liturgia cristã. Como o silêncio, é uma linguagem de que necessitamos para entrar em sintonia com a beleza de Deus, para descobrir a sua presença. Vão-se as pressas, vão-se os cálculos, como sempre que se trata de amor: cantamos porque queremos ter tempo para Deus.

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«Cantemus Domino, gloriose enim magnificatus est! Cantarei ao Senhor porque estupenda foi a vitória»[1]. Sem solução de continuidade, a liturgia da Vigília Pascal une este canto ao o relato da passagem de Israel através do mar Vermelho: a música, cheia de alegria, surge espontânea ao tocar a proximidade de Deus. O portento das águas divididas converteu-se, para o Povo eleito, em emblema dessa proximidade de Deus: os salmos fazem-se, com frequência, eco disso[2]. No tempo da Igreja, este evento fala-nos do batismo, da Cruz, do céu… Fala-nos da nossa vida e da Vida que Deus nos tem preparada na outra margem, que «não é um simples embelezar esta vida atual: ela supera a nossa imaginação, porque Deus nos surpreende continuamente com o seu amor e com a sua misericórdia»[3].

Diante de Deus que nos surpreende com a sua novidade, brotam espontâneos o louvor e a adoração: o canto e o silêncio

Diante «do Deus das surpresas»[4], um Deus que sempre faz novas as coisas[5], «as palavras tornam-se supérfluas, porque a língua não consegue expressar-se; o entendimento aquieta-se. Não se discorre, olha-se! E a alma rompe outra vez a cantar com um cantar novo, porque se sente e se sabe também olhada amorosamente por Deus a toda a hora»[6]. Diante do Deus que nos surpreende com a sua novidade, brotam espontâneos o louvor e a adoração: o canto e o silêncio. Um e outro estão profundamente relacionados, porque expressam o que as meras palavras não conseguem dizer. Por isso, a liturgia os reserva para os seus momentos mais sublimes. «Canta a Igreja – diz-se – porque falar não seria bastante para a sua oração. –Tu, cristão – e cristão escolhido – deves aprender a cantar liturgicamente»[7].

Um cântico novo

Humanamente irresolúvel. Assim era a situação do Povo eleito, encurralado entre o Mar Vermelho e o exército egípcio. À frente, a barreira do mar; à retaguarda, a força beligerante das armas. «O inimigo tinha dito: ‘Vou perseguir, alcançar, repartir os despojos, saciar-me deles. Vou tirar minha espada e despojá-los com a minha mão»[8]. Assim se encontra também a Igreja, tantas vezes, assediada por aqueles que quereriam apagá-la da face da terra, ou, pelo menos, esvaziá-la do seu caráter sobrenatural.

Mas Deus está connosco, como estava com os israelitas. Diante dos impossíveis humanos, brilha a sua glória por contraste com o poderio do Faraó e dos faraós da história: de modos inesperados, o mar aparta-se e abre-nos a passagem, e fecha-se de novo perante o inimigo. «Sopraste com teu vento, e o mar os cobriu; afundaram-se como chumbo em águas profundas»[9].

A narração sagrada não desvela os pensamentos de Israel, enquanto atravessavam o mar por caminho enxuto, com muralhas de água à direita e à esquerda. Só no final, a Bíblia volta o seu olhar sobre os israelitas para mostrar a sua reação. «Israel viu a mão poderosa do Senhor agir contra o Egito.­ O povo temeu o Senhor e teve fé no Senhor e em Moisés, seu servo. Então Moisés e os israelitas cantaram ao Senhor este cântico:
“Cantarei ao Senhor porque estupenda foi a vitória»[10]: temor e renovada fé em Deus, que se desborda no primeiro cântico novo[11] de que a Escritura dá notícia.

Não conhecemos essa música. Ninguém a pôde recolher de nenhuma forma e nem sequer a tradição oral a fez chegar até nós. Mas devia ser sincera: brotava de um profundo agradecimento, expressava um profundo sentido de adoração. Devia ser avassaladora: qualquer testemunha externa teria podido tocar a presença de Deus naquele cântico, como a tocaram aqueles que a entoaram.

Depois deste episódio, os israelitas encontrarão mais dificuldades no deserto. Primeiro, as águas amargas de Mará, que se tornam doces em virtude do madeiro, figura da Cruz[12]; depois, o rigor do deserto de Sin, que o Senhor mitiga com o maná e as codornizes; as águas de Masá e Meribá... Deus saía sempre ao encontro das dificuldades e o povo renovava o seu cantar. A esperança era chegar ao momento em que tudo seria já cântico novo.

«A liturgia é tempo de Deus e espaço de Deus e nós devemos aí entrar, no tempo de Deus, no espaço de Deus e não olhar para o relógio» (Papa Francisco).

A vinda de Cristo inaugurou a salvação definitiva: «A salvação vem do nosso Deus que se senta no trono e do Cordeiro»[13]. O cântico novo, que já não passa, começou-se a entoar. Ao mesmo tempo, no entanto, esperamos o momento em que seja pleno, tal como no-lo apresenta o Apocalipse[14]. De certo modo, a Igreja já chegou à Terra Prometida, mas continua a sua peregrinação pelo deserto: por isso na liturgia fala de si mesma como «peregrinans in terra»[15]. Na realidade, “novo”, na linguagem bíblica, «não indica tanto a novidade exterior das palavras, mas a plenitude última que sela a esperança. Assim pois, se canta a meta da história, em que por fim calará a voz do mal (…). Mas depois deste aspeto negativo apresenta-se, com um espaço muito maior, a dimensão positiva, a do novo mundo feliz que está quase a chegar»[16].

A música do céu, na terra

Quando o Cordeiro «recebeu o livro, os quatro Seres vivos e os vinte e quatro Anciãos prostraram-se (…). Todos tinham harpas e taças de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos. E entoaram um cântico novo»[17]. A Sagrada Escritura não se poupa, na sua sobriedade, à menção do canto no céu. É lógico que o faça, porque «Deus não é solidão, mas amor glorioso e alegre, difusivo e luminoso»[18]. A imaginação pode sugerir-nos a música que acompanhou a Virgem quando a Trindade Beatíssima a recebeu no céu. Exércitos de anjos esperam a sua Rainha que está para chegar em corpo e alma. A música é solene; transborda de afeto, de alegria, do delicado equilíbrio da beleza. A Virgem aparece, esplendorosa, e o Filho, que introduziu a humanidade no seio da Trindade, recebe a sua Mãe.

A liturgia terrena, também quando não nos conseguimos aperceber de toda a sua beleza, talvez pelas circunstâncias externas ou pelas nossas próprias, é «o culto do templo universal que é Cristo ressuscitado, cujos braços estão estendidos na cruz para atrair a todos no abraço do amor eterno de Deus. É o culto do céu aberto»[19]. Por isso, os prefácios da Missa terminam sempre convidando todos a cantar Sanctus juntamente com os anjos e os santos. No Sanctus a terra e o céu unem-se: «associamo-nos cheios de gratidão a este cantar de todos os séculos, que une céu e terra, anjos e homens»[20]. «Eu aplaudo e louvo com os Anjos, dizia S. Josemaría; não me é difícil, porque me sei rodeado deles, quando celebro a Santa Missa. Estão a adorar a Trindade»[21].

Certamente, no relato do anúncio dos anjos aos pastores, «Lucas não diz que os anjos cantaram. Ele escreve muito sobriamente: o exército celestial louvava a Deus dizendo: “Glória a Deus no céu...” (Lc 2, 13s). Mas os homens sempre souberam que o falar dos anjos é diferente do dos homens; que precisamente esta noite da mensagem gozosa foi um cântico em que brilhou a glória sublime de Deus. Por isso, este cântico dos anjos foi entendido desde o princípio como música que vem de Deus, mais ainda, como convite a unir-se ao cântico, à alegria do coração por sermos amados por Deus»[22].

Este é o enquadramento em que se insere a rica criatividade musical da liturgia, que começou a desenvolver-se com a oração de Israel: o esforço por entrar em sintonia com a beleza de Deus, por nos assomarmos ao céu. «A liturgia é tempo de Deus e espaço de Deus, e nós devemos entrar ali, no tempo de Deus, no espaço de Deus e não olhar para o relógio. A liturgia é precisamente entrar no mistério de Deus; deixar-nos levar ao mistério e estar no mistério»[23]. S. Josemaría escrevia, nessa mesma linha, que na Santa Missa «deveriam parar os relógios»[24]: perante Deus não pode ter lugar uma posição meramente instrumental, pragmática. «A aparição da beleza, do belo, faz-nos alegres sem termos que nos perguntar pela sua utilidade. A glória de Deus, de que provém toda a beleza, faz saltar em nós o assombro e a alegria»[25].

Ao alcance de todos

A participação de cada um no canto litúrgico manifesta também o carinho, o «sentido do mistério»[26] que nos leva a pôr entre parenteses os critérios de eficácia próprios de outros contextos. Sem deixar de atender às circunstâncias profissionais e familiares de todos, muitas vezes pode dar-se à celebração litúrgica esse toque que ajuda, de um modo concreto, a adorar a Deus. Talvez nisto iremos a contracorrente de uma cultura pragmatista de que também nós somos filhos; mas também assim, dando à liturgia o seu tempo, com o resplendor simples da nossa fé, levamos o mundo a Deus: Fazemo-lo presente na muito atarefada vida moderna, que não sabe ter tempo para Ele. «Não é estranho que muitos cristãos – pausados e até solenes na vida social (não têm pressa), nas suas pouco activas actuações profissionais, na mesa e no descanso (também não têm pressa) – se sintam apressados e apressem o Sacerdote na sua ânsia de encurtar, de abreviar o tempo dedicado ao Santíssimo Sacrifício do Altar?»[27]. A fé «é amor e por isso cria poesia e cria música»[28]: se a nossa fé é viva, também saberemos parecer-nos nisto aos primeiros cristãos, a quem São Paulo animava a cantar e a celebrar o Senhor com todo o coração[29].

Não é, pois, a música litúrgica uma questão de sentimentalismo ou de esteticismo, é questão de amor, de querer «tratar a Deus com ternura de coração»[30] e não «de uma maneira oficial e seca, com uma fé que não tem vibração»[31]. Do mesmo modo que sentiríamos a falta da música num momento festivo da vida, é natural que queiramos dar esse realce à liturgia. Às vezes, na celebração quotidiana, bastará um cântico breve, piedoso: Adoro te devote, Ave Maris Stella, Rorate Coeli, etc. Nas festas, em função das aptidões dos fiéis, a música adquirirá um maior protagonismo, cantando algumas partes da Missa – o Gloria, o Sanctus, etc. – e servindo-se talvez do acompanhamento do órgão.

A Sagrada Escritura fala do canto no céu; é lógico que o faça, porque «Deus não é solidão, mas amor glorioso e gozoso, difusivo e luminoso» (Bento XVI).

Ao longo dos séculos, a Igreja formou uma preciosa tradição de música sacra. A novidade do culto cristão impulsionou a procurar formas poéticas e musicais novas que expressaram como a oração se elevava a níveis inusitados: «Corresponde aos homens cantar Salmos, mas cantar hinos corresponde aos Anjos e àqueles que levam uma vida como a dos Anjos»[32]. Assim, a liturgia romana destaca o gregoriano como canto próprio[33], com o qual podemos orar durante a celebração da Santa Missa; por exemplo, o Missal Romano de altar oferece as notas para poder cantar o Per ipsum no final da Oração Eucarística, bem como outras orações.

Dentro do grande repertório de música sacra cristã, encontram-se cânticos ao nível de todas as sensibilidades e capacidades, desde melodias simples, até complexas polifonias. Há também cânticos de feitura mais recente que, a partir da própria identidade cultural, sabem pôr música no mistério de Deus. Tanto as peças mais tradicionais como as modernas encontram-se em livros publicados para a ajuda dos fiéis; também se podem fazer recompilações dos cânticos mais adequados a cada lugar.

A participação de cada um no canto litúrgico manifesta também o carinho, o «sentido do mistério» que nos leva a pôr entre parêntesis os critérios de eficácia próprios de outros contextos.

Este é um campo promissor também para as pessoas com mais preparação musical; o esforço por dirigir a sua criatividade para tornar mais luminoso o culto fá-los-á também mais generosos com Deus, porque dedicando esse tempo ao Senhor e aos outros estão a oferecer o sacrifício de Abel[34]. Em todo o caso, vale a pena pôr aqui, pelo menos, o entusiasmo com que se prepara, por exemplo, a celebração de um aniversário: aprendendo e ensaiando canções que pertencem à cultura cristã, expressam uma autêntica sensibilidade litúrgica e dão material para a nossa oração. Com efeito, na liturgia estamos com Deus e Deus gosta que cantemos, porque às vezes falar não basta.

A linguagem da adoração

A música, na liturgia, não é um mero acompanhamento ou ornamentação; também não é a interpretação de um tema religioso que chama a atenção sobre si mesmo: num e noutro caso, a música decorreria em paralelo com a celebração, quando se trata, pelo contrário, de que seja uma mesma coisa com ela[35]. A verdadeira música litúrgica é ela própria oração, é ela própria liturgia; não nos dispersa, não se limita a dar-nos uma alegria sensível ou um prazer estético: recolhe-nos, introduz-nos no mistério de Deus. Conduz-nos à adoração, que tem no silêncio uma das suas linguagens privilegiadas: «o silêncio – recorda-nos o Papa – guarda o mistério»[36]. Se a música é de Deus, não competirá com o silêncio: levar-nos-á para o silêncio verdadeiro, o do coração.

Os instantes de silêncio que a liturgia prevê – antes de iniciar a Missa, no ato penitencial, nos mementos, na consagração, etc. – são convites a recolher-nos em adoração. Preparam-nos para o momento da comunhão, porque «para comungar verdadeiramente com outra pessoa devo conhecê-la, saber estar em silêncio junto dela, escutá-la, olhá-la com amor. O verdadeiro amor e a verdadeira amizade vivem sempre desta reciprocidade de olhares, de silêncios intensos, eloquentes, cheios de respeito e veneração, de maneira que o encontro se viva profundamente, de modo pessoal e não superficial»[37].

«Tu, eu, adoramos o Senhor?», pergunta-nos o Papa, dirigindo-nos para o centro íntimo da liturgia, que será o nosso céu. «Recorremos a Deus só para pedir, para agradecer, ou dirigimo-nos a Ele também para O adorar? Mas, então, o que quer dizer adorar a Deus? Significa aprender a estar com Ele, a parar para dialogar com Ele, sentindo que a sua presença é a mais verdadeira, a melhor, a mais importante de todas (…); adorar o Senhor quer dizer que estamos convencidos diante d’Ele que é o único Deus, o Deus da nossa vida, o Deus da nossa história»[38].

Carlos Ayxelà


[1] Ex 15, 1.

[2] cf. Sl 65; 77; 105; 135.

[3] Francisco, Angelus, 10/11/2013.

[4] Francisco, Homilia em Santa Marta, 20/01/2014.

[5] cf. Ap 21, 5.

[6] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 307.

[7] S. Josemaria, Caminho, n. 523.

[8] Ex 15, 9.

[9] Ex 15, 10.

[10] Ex 14, 31 - 15, 1.

[11] cf. Sl 32; 39; 95; 97; 143; 149.

[12] cf. Ex 14, 22-25.

[13] Ap 7, 10.

[14] Ap 5, 9-10; 14, 3.

[15] Missal Romano, Oração eucarística III.

[16] Bento XVI, Audiência, 26/01/2006; cf. Sl 143.

[17] Ap 5, 8-9.

[18] Bento XVI, Homilia, 19/02/2012.

[19] Bento XVI, Audiência, 03/10/2012.

[20] Bento XVI, Homilia, 24/12/2010.

[21] S. Josemaria, Cristo que passa, n. 89.

[22] Bento XVI, Homilia, 24/12/2010.

[23] Francisco, Homilia, 10/02/2014.

[24] S. Josemaria, Forja, n. 436.

[25] Bento XVI, Homilia, 24/12/2010.

[26] João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, n. 49.

[27] S. Josemaria, Caminho, n. 530.

[28] Bento XVI, Audiência, 21/05/2008.

[29] cf. Ef 5, 19; Col 3, 17.

[30] S. Josemaria, Amigos de Deus, n. 167.

[31] S. Josemaria, Forja, n. 930.

[32] Orígenes, Sel. in psalmos, em Sal 119 [118],71.

[33] cf. Concílio Vaticano II, Sacrosanctum concilium, n. 116.

[34] cf. Missal Romano, Oração Eucarística I; cf. Gn 4, 4.

[35] cf. Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, n. 112.

[36] Francisco, Homilia em Santa Marta, 20/12/2014.

[37] Bento XVI, Homilia, 07/06/2012.

[38] Francisco, Homilia, 14/04/2013.

Carlos Ayxelà