Publicada a Exortação Apostólica "Amoris laetitia"

Apresentamos um resumo da Exortação Apostólica "Amoris Laetitia" sobre o amor humano, publicada no dia 8 de abril. O Prelado do Opus Dei pediu "que todos saibamos acompanhar as famílias mais e melhor ".

Com o motivo da publicação deste documento, o Prelado do Opus Dei, D. Javier Echevarría, manifestou hoje o seu desejo "de que todos os fiéis e amigos da Prelatura acompanhem, nestes dias, o Papa Francisco com abundantes orações pela sua pessoa e intenções, de modo que todos saibamos — com a ajuda do Espírito Santo — acompanhar mais e melhor as famílias".

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Síntese baseada no resumo distribuído pelo Gabinete de Imprensa da Santa Sé:

A exortação apostólica pós-sinodal sobre o amor na família “Amoris laetitia” (“A alegria do amor”) - terminada, não por casualidade, no dia 19 de março, solenidade de São José — recolhe os resultados dos dois sínodos sobre a família convocados pelo Papa Francisco em 2014 e 2015, pelo que as relações conclusivas de ambas as assembleias são extensamente citadas. Juntamente com elas, citam-se documentos e ensinamentos dos últimos Pontífices e faz-se também referência às numerosas catequeses sobre a família do próprio Papa Francisco. No entanto, como já sucedeu noutros documentos do magistério, o Papa faz também uso das contribuições de diversas conferências episcopais do mundo (por exemplo, Quénia, Austrália e Argentina) e de frases significativas de pessoas bem conhecidas, como Martin Luther King ou Eric Fromm. Destaca particularmente uma citação tomada do filme O festim de Babette, que o Papa utiliza para explicar o conceito de gratuidade.

Premissa

A exortação apostólica impressiona pela sua amplitude e estrutura. Consta de nove capítulos e mais de 300 parágrafos. Abre com sete parágrafos introdutórios que evidenciam que o Papa tem consciência da complexidade do tema e da profundidade que requer. Afirma-se que as intervenções dos padres no Sínodo conformaram um “precioso poliedro” (Amoris laetitia 4 [daqui em diante indicar-se-á com as siglas AL]) que deve ser preservado. Neste sentido, o Papa escreve que “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser solucionadas com intervenções do magistério”. Portanto, para algumas questões “em cada país ou região devem procurar-se soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De facto, “as culturas são muito diversas entre si e todo o princípio geral […] tem necessidade de ser inculturado, se quer ser observado e aplicado” (AL 3). Este princípio de inculturação é verdadeiramente importante mesmo no modo de colocar e compreender os problemas que, para além das questões dogmáticas bem definidas do Magistério da Igreja, não pode ser “globalizado”.

Mas sobretudo o Papa afirma, imediatamente e com clareza, que é necessário sair da estéril contraposição entre a ansiedade de mudança e a aplicação pura e simples de normas abstratas. Escreve: “Os debates que se verificam nos meios de comunicação, nas publicações e mesmo entre ministros da Igreja, vão desde um desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação, até à atitude de pretender resolver tudo aplicando normativos gerais ou retirando conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas” (AL 2).

Capítulo primeiro: “À luz da Palavra”

Expostas estas premissas, o Papa articula a sua reflexão a partir da Sagrada Escritura no primeiro capítulo, que se desenvolve como uma meditação sobre o Salmo 128, característico da liturgia nupcial tanto judia como cristã. A Bíblia “está povoada de famílias, de gerações, de histórias de amor e de crises familiares” (AL 8) e a partir deste dado pode meditar-se como a família não é um ideal abstrato mas um “trabalho artesanal” (AL 16) que se expressa com ternura (AL 28), mas que se confrontou também com o pecado desde o início, quando a relação de amor se transforma em domínio (cfr. AL 19). Então a Palavra de Deus “não se mostra como uma sequência de teses abstratas, mas como uma companheira de viagem também para as famílias que estão em crise ou no meio de alguma dor e lhes mostra a meta do caminho” (AL 22)

Capítulo segundo: “A realidade e os desafios da família”

A partir do terreno bíblico, no segundo capítulo, o Papa considera a situação atual das famílias, pondo “os pés na terra” (AL 6), recorrendo amplamente às relações conclusivas dos dois Sínodos e enfrentando numerosos desafios: o fenómeno migratório, as negociações ideológicas da diferença de sexos (“ideologia de gender”), a cultura do provisório, a mentalidade antinatalista, o impacto da biotecnologia no campo da procriação, a falta de casa e de trabalho, pornografia, o abuso de menores, a atenção às pessoas deficientes, o respeito que merecem os idosos, a decomposição jurídica da família e a violência contra as mulheres. O Papa insiste no concreto, que é uma característica fundamental da exortação apostólica. E são as coisas concretas e o realismo que oferecem uma substancial diferença entre uma teoria de interpretação da realidade e as ideologias.

Citando a Familiaris consortio Francisco afirma que “é salutar prestar atenção à realidade concreta, porque “os pedidos e apelos do Espírito ressoam também nos próprios acontecimentos da história”, através dos quais “a Igreja pode ser guiada para uma compreensão mais profunda do inesgotável mistério do matrimónio e da família” (AL 31). Portanto, sem escutar a realidade, não é possível compreender as exigências do presente nem os apelos do Espírito. O Papa nota que hoje o individualismo exagerado torna difícil a entrega a outra pessoa de maneira generosa (cfr. AL 33). Esta é uma interessante fotografia da situação: “Teme-se a solidão, deseja-se um espaço de proteção e de fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o temor de ficar encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais” (AL 34).

A humildade do realismo ajuda a não apresentar “um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato, quase artificialmente construído, afastado da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias reais” (AL 36). O idealismo impede de considerar o matrimónio como aquilo que é: “um caminho dinâmico de crescimento e realização”. Tem de se evitar também pensar que se apoiam as famílias “insistindo somente em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça” (AL 37). Francisco, convidando a uma certa “autocrítica” diante de uma apresentação inadequada da realidade matrimonial e familiar, explica que é necessário dar espaço à formação da consciência dos fiéis: “Estamos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37). Jesus propunha um ideal exigente mas “nunca perdia a compaixão próxima com as pessoas mais frágeis como a samaritana ou a mulher adúltera” (AL 38).

Capítulo terceiro: “O olhar posto em Jesus: a vocação da família”

O terceiro capítulo é dedicado a alguns elementos essenciais dos ensinamentos da Igreja acerca do matrimónio e da família. A presença deste capítulo é importante, porque ilustra de maneira sintética, em 30 parágrafos, a vocação da família segundo o Evangelho e segundo a compreensão que dela teve a Igreja ao longo do tempo. Nesta perspetiva abordam-se os temas da indissolubilidade, a sacramentalidade do matrimónio, a transmissão da vida e a educação dos filhos. São amplamente citadas a Gaudium et spes, do Vaticano II, a Humanae vitae, de Paulo VI e a Familiaris consortio, de João Paulo II.

O olhar é amplo e inclui também as situações imperfeitas. Escreve Francisco: “O discernimento da presença das semina Verbi noutras culturas (cfr. Ad gentes, 11) pode ser aplicado também à realidade matrimonial e familiar. Fora do verdadeiro matrimónio natural, também há elementos positivos presentes nas formas matrimoniais de outras tradições religiosas, ainda que não faltem as sombras” (AL 77). A reflexão faz também referência às famílias feridas, falando delas o Papa afirma — citando a relatio finalis do sínodo de 2015 — que “é sempre necessário recordar um principio geral: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio, 84). O grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e pode haver fatores que limitam a capacidade de decisão. Portanto, ao mesmo tempo que a doutrina se deve expressar com clareza, há que evitar os juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (AL 79).

Capítulo quarto: “O amor no matrimónio”

O quarto capítulo trata do amor no matrimónio, que é ilustrado a partir do hino ao amor de São Paulo (cfr. 1 Cor 13, 4-7). O capítulo é na realidade uma exegese atenta, pontual, inspirada e poética do texto Paulino. Trata-se como que de uma coleção de fragmentos de um discurso amoroso que está atento a descrever o amor humano em termos absolutamente concretos. Destaca a capacidade de introspeção psicológica que se evidencia nesta exegese: o aprofundamento psicológico entra no mundo das emoções dos cônjuges — positivas e negativas — e na dimensão erótica do amor. Trata-se de uma contribuição extremamente rica e preciosa para a vida cristã dos cônjuges.

A seu modo, este capítulo constitui um tratado dentro da exortação, escrito com a consciência de que a quotidianidade do amor é inimiga do idealismo. “Não se deve atirar sobre duas pessoas limitadas — escreve o Pontífice — o tremendo peso de ter que reproduzir de maneira perfeita a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o matrimónio como sinal implica “um processo dinâmico, que avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus” (Familiaris consortio, 9)” (AL 122). Mas, por outro lado, o Papa insiste, de maneira vigorosa e decidida no facto de que “na própria natureza do amor conjugal está a abertura ao definitivo” (AL 123) e sublinha que a alegria se encontra dentro do matrimónio quando se aceita que este é uma necessária combinação "de alegrias e de esforços, de tensões e de descanso, de sofrimentos e de libertações, de satisfações e de procuras, de dores e de prazeres" (AL 126).

O capítulo conclui com uma reflexão muito importante sobre a “transformação do amor” porque “o prolongamento da vida faz com que se produza algo que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a pertença mútua devem conservar-se por quatro, cinco ou seis décadas, e isto converte-se numa necessidade de voltar a escolher-se uma e outra vez” (AL 163). O aspeto físico muda e a atração amorosa não diminui, mas muda: o desejo sexual com o tempo pode transformar-se em desejo de intimidade e “cumplicidade”. “Não podemos prometer ter os mesmos sentimentos durante toda a vida. Pelo contrário, podemos, sim, ter um projeto comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe e viver sempre uma intimidade rica” (AL 163).

Capitulo quinto: “O amor que se torna fecundo”

O capítulo quinto está centrado na fecundidade e na geração. Fala-se das implicações espirituais e psicológicas de receber uma nova vida, da espera própria da gravidez, do amor de mãe e de pai. Mas também da fecundidade ampliada, da adoção, da aceitação da contribuição das famílias para promover a “cultura do encontro”, da vida da família em sentido amplo, com a presença dos tios, primos, parentes de parentes, amigos. Na exortação, a família aparece como uma ampla rede de relações já que o sacramento do matrimónio, em si mesmo, tem um profundo caráter social (cfr. AL 186); o Papa destaca o papel específico das relações entre jovens e idosos e entre irmãos e irmãs, pois permitem um crescimento nas relações um com os outros.

Capítulo sexto: “Algumas perspetivas pastorais”

No sexto capítulo o Papa expõe algumas vias pastorais para construir famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus. Nesta parte a exortação recorre abundantemente às relações conclusivas dos dois Sínodos sobre a família e às catequeses de Francisco e de João Paulo II. Recorda-se que as famílias são sujeito e não somente objeto de evangelização e reconhece-se que “aos ministros ordenados costuma faltar-lhes formação adequada para tratar os complexos problemas atuais das famílias” (AL 202). Se por um lado é necessário melhorar a formação psico-afetiva dos seminaristas e envolver mais as famílias na formação do ministério (cfr. AL 203), por outro lado “pode ser útil (…) também a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (cfr. AL 239).

Depois, o Papa enfrenta a necessidade de guiar os noivos no caminho da preparação para o matrimónio e de acompanhar os esposos nos primeiros anos de vida matrimonial (tratando o tema da paternidade responsável). Fala também da necessidade de acompanhar nalgumas situações complexas, em particular, nas crises, sabendo que “cada crise esconde uma boa notícia que há que saber escutar afinando o ouvido do coração” (AL 232). Analisam-se algumas causas de crises, entre elas, um amadurecimento afetivo tardio (cfr. AL 239).

Fala-se também do acompanhamento das pessoas abandonadas, separadas e divorciadas sublinha-se a importância da recente reforma dos procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade matrimonial. Põe-se em relevo o sofrimento dos filhos nas situações de conflito e conclui-se: “O divórcio é um mal e é muito preocupante o crescimento do número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais importante a respeito das famílias, é fortalecer o amor e ajudar a sarar as feridas, de maneira que possamos prevenir o avanço deste drama da nossa época” (AL 246).

Tocam-se depois as situações de matrimónios mistos e de matrimónios com disparidade de culto e fala-se das uniões de pessoas com tendência homossexual, que se devem respeitar e que não devem ser ocasião de injusta discriminação, de agressão ou de violência. É muito valiosa pastoralmente a última epígrafe do capítulo, intitulado “Quando a morte crava o seu aguilhão”, sobre a perda de pessoas queridas e sobre a viuvez.

Capítulo sétimo: “Reforçar a educação dos filhos”

O sétimo capítulo é dedicado à educação dos filhos: a sua formação ética, o valor da sanção como estímulo, o paciente realismo, a educação sexual, a transmissão da fé, e, mais em geral, a vida familiar como contexto educativo. É interessante a sabedoria prática que transparece em cada parágrafo e, sobretudo, a atenção à gradualidade e aos pequenos passos “que possam ser compreendidos, aceites e valorizados” (AL 271).

Há um parágrafo muito significativo, também pedagogicamente, em que se afirma que “a obsessão não é educativa" e que "não se pode ter um controlo de todas as situações pelas quais pode chegar a passar um filho [...]. Se um pai está obcecado por saber onde está o seu filho e por controlar todos os seus movimentos, só procurará dominar o seu espaço. Desse modo não o educará, não o fortalecerá, não o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa sobretudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de capacitação, de crescimento integral, de cultura da autêntica autonomia” (AL 261).

É notável a secção dedicada à educação sexual, intitulada “Sim à educação sexual”. Nela, defende-se a sua necessidade e pergunta-se “se as nossas instituições educativas assumiram esse desafio [...] numa época em que se tende a banalizar e a empobrecer a sexualidade”. É “no quadro de uma educação para o amor, para a doação recíproca” (AL 280) onde a sexualidade deve realizar-se. Alerta-se para a expressão “sexo seguro”, porque transmite “uma atitude negativa para com a natural finalidade procriativa da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo do qual há que proteger-se. Assim se promove a agressividade narcisista em lugar do acolhimento” (AL 283).

Capítulo oitavo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”

O capítulo oitavo constitui um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral, frente a situações que não respondem plenamente àquilo que o Senhor propõe. O Papa utiliza três verbos muito importantes, acompanhar, discernir e integrar, que são fundamentais para enfrentar situações de fragilidade, complexas ou irregulares. Do mesmo modo, o Papa apresenta a necessária gradualidade na pastoral, a importância do discernimento, as normas e circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral e, finalmente, aquela que ele define como a “lógica da misericórdia pastoral”.

O capítulo oitavo é muito delicado. Ao lê-lo deve recordar-se que “frequentemente, a tarefa da Igreja se assemelha à de um hospital de campanha” (AL 291). Nesta parte, o Pontífice recolhe os frutos das reflexões do Sínodo sobre temáticas controversas. Recorda-se o que é o matrimónio cristão e acrescenta-se que “outras formas de união contradizem radicalmente este ideal, mas algumas realizam-no ao menos de modo parcial e análogo”. A Igreja, portanto, “não deixa de valorizar os elementos construtivos naquelas situações que não correspondem ainda, ou já não correspondem aos seus ensinamentos sobre o matrimónio” (AL 292).

Sobre o “discernimento” acerca das situações “irregulares”, o Papa observa que “há que evitar os juízos que não têm em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar atento ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (AL 296). E escreve: “Trata-se de integrar todos, deve ajudar-se cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objeto de uma misericórdia imerecida, incondicional e gratuita” (AL 297). No entanto, “os divorciados em nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não têm que ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas sem deixar lugar a um adequado discernimento pessoal e pastoral” (AL 298).

Nesta linha, acolhendo as observações de muitos padres sinodais, o Papa afirma que “os batizados que se tenham divorciado e se voltaram a casar civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã nas diversas formas possíveis, evitando qualquer ocasião de escândalo”. “A sua participação pode expressar-se em diferentes serviços eclesiais [...]. Eles não só não têm que se sentir excomungados, mas podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja [...]. Esta integração é também necessária para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser considerados os mais importantes” (AL 299).

Mais em geral, o Papa faz uma afirmação extremamente importante para compreender a orientação e o sentido da exortação: “Se se tem em conta a inumerável diversidade de situações concretas [...] pode compreender-se que não deveria esperar-se do Sínodo, ou desta exortação, um novo normativo geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. Só tem lugar um novo alento para um responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer que, posto que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos”, as consequências ou efeitos de uma norma não devem ser necessariamente sempre as mesmas” (AL 300). O Papa desenvolve, de modo profundo, exigências e características do caminho de acompanhamento e discernimento em diálogo profundo entre fiéis e pastores. Para esse fim pede a reflexão da Igreja “sobre os condicionamentos e circunstâncias atenuantes” no que se refere à imputabilidade e à responsabilidade das ações e, apoiando-se em São Tomás de Aquino, detém-se sobre a relação entre “as normas e o discernimento” afirmando: “É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve desatender nem descuidar, mas na sua formulação não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo, há que dizer que, precisamente por essa razão, aquilo que faz parte de um discernimento prático diante de uma situação particular não pode ser elevado à categoria de uma norma” (AL 304).

Na última secção do capítulo, “A lógica da misericórdia pastoral”, o Papa Francisco, para evitar equívocos, reafirma com vigor: “Compreender as situações excecionais nunca implica ocultar a luz do ideal mais pleno nem propor menos do que o que Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos fracassos é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim prevenir as ruturas” (AL 307).

Mas o sentido geral do capítulo e do espírito que o Papa quer imprimir à pastoral da Igreja está bem resumido nas palavras finais: “Convido os fiéis que estão a viver situações complexas, a aproximarem-se com confiança a conversar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das suas próprias ideias ou desejos, mas receberão seguramente uma luz que lhes permita compreender melhor o que lhes acontece e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar com afeto e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e de compreender o seu ponto de vista, para os ajudar a viver melhor e a reconhecer o seu próprio lugar na Igreja” (AL 312). Sobre a “lógica da misericórdia pastoral” o Papa Francisco afirma com vigor: “Por vezes custa-nos muito dar lugar na pastoral ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e de significado real, e essa é a pior maneira de diluir o Evangelho” (AL 311).

Capítulo nono: “Espiritualidade conjugal e familiar”

O capítulo nono é dedicado à espiritualidade conjugal e familiar, “feita de milhares de gestos reais e concretos” (AL 315). Com clareza se diz que “aqueles que têm profundos desejos espirituais não devem sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas que é um caminho que o Senhor utiliza para os levar aos cumes da união mística” (AL 316). Tudo, “os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a sexualidade, experimentam-se como uma participação na vida plena da sua Ressurreição” (AL 317). Fala-se então da oração à luz da Páscoa, da espiritualidade do amor exclusivo e livre no desafio e o desejo de envelhecer e gastar-se juntos, refletindo a fidelidade de Deus (cfr. AL 319). E, enfim, da espiritualidade “do cuidado, da consolação e do estímulo”. “Toda a vida da família é um “pastoreio” misericordioso. Cada um, com cuidado, pinta e escreve na vida do outro” (AL 322), escreve o Papa. É uma profunda “experiência espiritual contemplar cada ser querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele” (AL 323).

No parágrafo de conclusão o Papa afirma: “nenhuma família é uma realidade perfeita e confecionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar [...]. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós próprios e dos nossos limites, e cada família deve viver nesse estímulo constante. Avancemos famílias, continuemos a caminhar! [...]. Não percamos a esperança pelas nossas limitações, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e de comunhão que se nos prometeu” (AL 325).

A exortação apostólica termina com uma oração à Sagrada Família (AL 325).

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Como é possível compreender através de um rápido exame dos seus conteúdos, a exortação apostólica Amoris laetitia não procura propor um “ideal” de família, mas quer confirmar com vigor a sua rica e complexa realidade. Nas suas páginas descobre-se um olhar aberto, profundamente positivo, que não se nutre de abstrações ou projeções ideais, mas de uma atenção pastoral para a realidade. O documento proporciona numerosas sugestões espirituais e conselhos de sabedoria prática, úteis a todos os casais e às pessoas que desejam construir uma família. Vê-se, sobretudo, que é fruto do trato com pessoas que sabem por experiência o que é a família e o que implica viver juntos por muitos anos. A exortação fala, de facto, a linguagem da experiência.