Orar com o corpo e a alma

Jutta Burggraf, que era Doutora em Teologia, explica o sentido da mortificação cristã.

Há coisas que não compreendemos. Só nos podemos aproximar delas através da fé. E com amor. Por que é que Jesus Cristo morreu na cruz? Era necessária essa horrível Paixão para nos livrar das nossas obscuridades interiores? É claro que não. Deus podia perdoar-nos os nossos pecados de inúmeras maneiras diferentes, ou simplesmente não os perdoar. Provavelmente, escolheu a mais impressionante de todas, aquela que manifesta mais claramente a loucura do seu grande amor: fez-se homem, fez-se um de nós, e compartilhou as alegrias e dificuldades da nossa vida até ao fim. Apesar da sua eterna omnipotência, deixou-se, livremente, ser humilhado, flagelado, cuspido, ridicularizado, coroado de espinhos e cravado num madeiro. Porquê? Talvez para nos mostrar que é capaz de fazer “tudo” por nós, como um amigo que morre para salvar o outro. E para nos convencer, de uma vez por todas, que temos um imenso valor: o nosso destino não é indiferente a Deus. Mistério de amor, superabundância de generosidade.

Isto quer dizer que os cristãos têm de viver agora de um modo severo e rigoroso, que não devem disfrutar das coisas boas da vida? Exatamente o contrário! Cristo morreu para nós vivermos. Sofreu para nós sermos felizes. Destruiu as nossas cadeias para anunciarmos o seu reino de liberdade. A obra da salvação deveria refletir-se no rosto, no olhar, no sorriso e no riso, na serenidade e na fortaleza, na compreensão e na amizade, no ânimo sincero, solidário e generoso dos “libertados”.

Quem reconhece que é profundamente aceite e amado, deve transmitir o amor com alegria. E quer estar cada vez mais perto do amor da sua vida. Notamo-lo no amor humano, às vezes com uma clareza que nos faz tremer. Pensemos, por exemplo, nas mulheres alemãs que acompanharam voluntariamente os seus maridos judeus aos campos de concentração nazis, ou naquela mãe que se habituou a fechar os olhos durante quase todo o dia, para perceber o mundo da mesma maneira que o seu filho cego.

Algo semelhante acontece no amor a Jesus. Os cristãos querem compartilhar o seu destino. Não é verdade que duas pessoas se unem mais fortemente, quando vivem juntas uma grande dor, do que quando celebram uma festa maravilhosa? Por isso, os cristãos querem estar também na cruz, e não têm problemas em subir livremente ao Calvário. Como é que o fazem? Empenham-se em aceitar com ânimo os múltiplos problemas da vida quotidiana. Utilizam-nos como o material com o qual fabricam uma cruz, “a sua cruz”, aquela para a qual Cristo os considera preparados e que Ele leva com eles. Como é sabido, Deus costuma atuar assim com os seus amigos.

No entanto, quem ama é capaz de “se exceder”, de cometer loucuras. Os cristãos querem identificar-se cada vez mais plenamente com o Amado que se deixou, livremente, crucificar. Por esse motivo, procuram, segundo uma longa tradição, também livremente, “mortificações corporais”, como é o caso do jejum ou de uma peregrinação austera, e tantas outras. Claro que quem amam é o Crucificado, não a cruz em si. Não querem levar uma vida melhor do que a d’Ele. Se houve quem flagelasse e cuspisse em Cristo, não desejam que a si próprios deem honras. Não querem ter uma vida cómoda e aburguesada, mas uma vida com Ele e como Ele. Este é o primeiro aspeto, o mais importante, da “mortificação corporal”.

Há também outro, que tem a ver com a nossa natureza: somos corpo e alma. Todas as nossas atividades espirituais estão profundamente unidas à nossa vida sensitiva. Além disso, a nossa natureza humana está debilitada pelo pecado. Há desordem e tentações. Opor-se à realidade e pretender contrariar os movimentos da nossa natureza, acaba por ser completamente inútil. Uma atitude com esta finalidade conduziria unicamente à rigidez de um estoicismo desumano. Mas é também erróneo ceder ante todos os desejos e esquecer a realidade que cada um de nós vive. O mais conveniente é aceitar-nos como somos. Quando há algo no coração que vai contra o amor, precisamos de sinceridade para reconhecer os nossos sentimentos e não ocultá-los ou simplesmente reprimi-los. Isso só levaria a uma atitude convulsiva.

Um cristão quer limpar a sua “casa interior”, cada dia de novo, para que Deus possa habitar cada vez mais profundamente nela. É o outro aspeto da “mortificação corporal”. Aliás, esta é uma expressão pouco feliz. Não se trata de “matar” nada nem ninguém, mas de ordenar as paixões e educar os sentidos. É importante que cada qual encontre o seu próprio modo de atuar, que o ajude a crescer no amor e, ao mesmo tempo, a vencer as tentações. Não é necessário que todos façam o mesmo. Cada época tem o seu estilo particular, a sua mentalidade, os seus costumes e formas de proceder.

Certamente a luta interior é mais importante, mas não devemos desprezar a exterior, que pode preparar-nos para a outra. Talvez o reto significado da “mortificação corporal” tenha sido adulterado no passado, e chegou-se a exageros. Também por isso, hoje em dia, a “mortificação” é rejeitada por amplos setores. Mas não podemos renunciar a todo o tipo de vida ascética, só porque houve alguns exageros conhecidos. Mas a ascética deve viver-se de forma inteligente, prudente e oportuna. Pôr em ordem o caos interior que, por vezes, temos, pode conseguir-se por amor a Deus, sem medos, escrúpulos ou formalismos, com muita confiança e uma grande liberdade, e com um coração generoso. É uma forma de rezar: orar com o corpo e a alma.

Se a luta é sincera, conduz a um encontro mais pessoal com Cristo. Através dela procura-se o amor de Deus, e não a simples perfeição própria. Não nos devemos conduzir pelo medo de “fazer coisas mal” e de poder cair. O que é decisivo é o valor de nos levantarmos uma e outra vez. Deus é-nos mais suave e mais grato quando elevamos a Ele o nosso coração dorido e contrito, do que quando pretendemos mostrar-Lhe todas as nossas vitórias ascéticas e a nossa perfeição moral.

Se a luta for humilde, o nosso coração dilata-se. O próprio Deus, que quer habitar em nós, faz-nos participar não só na sua Cruz, mas também na sua Ressurreição. Dá-nos a força de superar a nossa rigidez e a nossa estreiteza de vistas, e a cegueira para ver a indigência dos outros. E dá-nos luz para vermos os nossos próprios limites e a grande necessidade que temos dos outros. Numa palavra, faz-nos capazes de amar de verdade.

Jutta Burggraf