Homilia de D. Nuno Brás na missa em honra de S. Josemaria

O bispo auxiliar de Lisboa presidiu à missa que se celebrou, no passado dia 26 de Junho, na Igreja de Nª Sª de Fátima (Lisboa)

«Faz-te ao largo»: este mandamento, que o Senhor dá a Pedro após uma inútil noite de trabalho, faz toda a diferença entre a realidade do mero trabalho humano e a abundância da pesca em que as redes «se começavam a romper».

Pedro não deixa de notar ao Senhor: «Mestre, andámos na faina toda a noite e não apanhámos nada». Depois de uma noite de canseiras, ainda valeria a pena regressar ao trabalho? Humanamente, tudo indicava a irracionalidade dessa atitude - mesmo a aparente irracionalidade da ordem de Jesus: o Mestre poderia dominar a palavra, poderia seduzir com as suas atitudes, poderia falar de Deus como ninguém; mas de pesca percebiam os discípulos. E não tinham apanhado nada durante várias horas de duro trabalho.

Contudo, Pedro manifesta uma abertura, uma atitude de disponibilidade, fruto dos primeiros encontros já tidos com o Senhor: in verbo autem tuo laxabo rete: os meus conhecimentos de pesca dir-me-iam para terminar o trabalho; os que se encontram comigo na faina poderão não entender o regresso ao mar; mas sobre a Tua palavra lançarei as redes: a Tua palavra faz a diferença!

O mandato do Senhor e a disponibilidade do discípulo para o acolher: eis a combinação necessária para que o milagre tenha lugar, e as redes quase se rompam!

Para Pedro foi então evidente que, diante de si, não se encontrava um simples Mestre bem-falante, arrebatador publicitário de multidões, ainda que em nome de Deus. Diante de Pedro encontrava-se o próprio Deus e, com Ele, a diferença, não apenas do êxito ocasional de uma noite de pesca, mas a diferença dum novo horizonte para toda a existência.

De joelhos, Pedro não hesita em confessar o seu temor de homem e de crente, perante a presença tão próxima do Deus, Senhor de toda a criação e da história, em confronto com o seu pecado: “Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador”! Mas nem por isso Jesus deixa de lhe confiar a missão: «Não temas. Daqui em diante serás pescador de homens».

«Pescador de homens». Esta é a tarefa confiada a Pedro, e nele à Igreja inteira. Meditemo-la por alguns instantes.

Comecemos por notar que, como expressamente nos recordou o Concílio Vaticano II, o apostolado, longe de ser exclusivo do ministério sacerdotal, é missão de toda a Igreja: «A Igreja — afirma o Decreto conciliar Ad gentes — […] por íntima exigência da sua própria catolicidade, obedecendo a um mandato do seu Fundador, procura incansavelmente anunciar o Evangelho» (AG 1).

A missão não é criada pelos discípulos. Não se trata de qualquer coisa que tenhamos inventado para nos sentirmos melhores; de uma qualquer estratégia a que tenhamos dado origem; de um qualquer objetivo que nos propusemos a fim de que as nossas opiniões possam ter mais peso no mundo em que vivemos. Nem é, sequer, opcional.

Não: o apostolado é fruto de um mandamento do Senhor. E apenas nele encontra a sua razão de ser. Muitas vezes é-nos humanamente inconveniente; noutras alturas parece irracional. E, no entanto, o Senhor continua a dizer-nos, apesar do esforço aparentemente desperdiçado, das noites passadas em vão, das iniciativas missionárias que parecem não dar frutos: «lança as redes». A obra não é nossa, mas de Deus. Como aconteceu com S. Josemaria, naquele dia 2 de outubro de 1928, quando depois da Santa Missa «viu» a vontade de Deus, como ele próprio narrava: «Tinha vinte e seis anos, graça de Deus e bom humor. E nada mais. E tinha de fazer o Opus Dei». E a quem o interrogava sobre se tal tarefa seria possível, não hesitava em responder: «Não é uma invenção minha, é uma voz de Deus» [1].

Depois, notemos que a missão que Jesus confia a Pedro e à Igreja nos torna «pescadores de homens». Trata-se de dar a conhecer aos outros a pessoa de Jesus — ou, como dizia o Papa Francisco: «Quem se abriu ao amor de Deus, acolheu a sua voz e recebeu a sua luz, não pode guardar este dom para si mesmo” (LF 37).

Esta expressão «pescador de homens», convida-nos também a determo-nos nela, por pouco que seja. Em primeiro lugar, porque a Pedro Jesus não pede que deixe se ser pescador. Mas, ao mesmo tempo, pede-lhe que «pesque homens». Quase podíamos dizer: pede-lhe que use os conhecimentos da sua atividade, da sua profissão, já não como um simples modo de sustento pessoal ou familiar, ou como um contributo para a construção da sociedade, mas antes como uma forma de o Reino de Deus chegar ao coração de todos.

Sabemos que, a Pedro, o Mestre o convidará a deixar o exercício da sua atividade profissional para se entregar completamente ao apostolado enquanto cabeça do grupo dos Doze. Mas sabemos também que o exercício da missão de «pescador de homens» é, no seu habitual, realizada pelos cristãos no lugar da sua vida quotidiana.

Ou, como dizia S. Josemaria aos seus filhos: «se permaneceis no meio do mundo, não é porque Deus se tenha esquecido de vós; convidou-vos a permanecer nas atividades e nas ansiedades da Terra, porque vos fez saber que a vossa vocação humana, a vossa profissão, as vossas qualidades, não só não são alheias aos seus desígnios divinos, mas Ele as santificou como oferenda gratíssima ao Pai!» [2]. E, noutro passo: «Que a tua vida não seja uma vida estéril. - Sê útil. - Deixa rasto. - Ilumina, com o resplendor da tua fé e do teu amor.

Apaga, com a tua vida de apóstolo, o rasto viscoso e sujo que deixaram os semeadores impuros do ódio. - E incendeia todos os caminhos da Terra com o fogo de Cristo que levas no coração» [3]. Até porque, «de cem almas, interessam-nos as cem» [4].

A pesca milagrosa só teve lugar porque Jesus encontrou o coração de Pedro disponível, não para agir com base em pensamentos humanos mas na palavra divina. E isso é apenas possível quando, como nos recorda S. Josemaria, unimos «o trabalho profissional à luta ascética e à contemplação – coisa que pode parecer impossível, mas que é necessária para ajudar a reconciliar o mundo com Deus – e transformar esse trabalho quotidiano em instrumento de santificação pessoal. » [5].

Diríamos: Jesus encontrou em Pedro um coração filial, confiante: «o Senhor, querendo-nos como filhos— afirmava ainda S. Josemaria —, fez com que vivamos em sua casa no meio deste mundo; que sejamos da sua família; que o que é seu seja nosso e o nosso seu; que tenhamos com Ele a mesma familiaridade com que um menino é capaz de pedir a própria lua!» [6].

Pescadores de homens, sempre, sem desfalecer, e certos de que essa é a vontade do Mestre. Em cada momento, de coração disponível, e firmes na vontade do Senhor, mas utilizando todo o nosso saber quotidiano, que é igualmente fruto da Sua graça: eis os «discípulos missionários», como convida o Santo Padre Francisco, na sua recente Exortação Apostólica. Apóstolos no meio do mundo, com a ousadia de que, desde o início, se fez igualmente eco S. Josemaria, ao fundar, em 1933, a “Academia DYA” — siglas oficiais para a «Academia de Direito e Arquitetura», em Madrid, mas que tinham igualmente um significado mais profundo: «Deus e Audácia»!

E, no final de tudo, escutemos ainda S. Josemaria: «Não nos enganemos. Na nossa vida, se contamos com brio e com vitórias, devemos também contar com quedas e derrotas. Essa foi sempre a peregrinação terrena do cristão, incluindo a daqueles que veneramos nos altares. Recordai-vos de Pedro, de Agostinho, de Francisco. Nunca me agradaram as biografias dos santos em que, com ingenuidade, mas também com falta de doutrina, nos apresentam as façanhas desses homens, como se estivessem confirmados em graça desde o seio materno. Não. As verdadeiras biografias dos heróis cristãos são como as nossas vidas: eles lutavam e ganhavam, lutavam e perdiam. E então, contritos, voltavam à luta» [7].

+ Nuno, Bispo Auxiliar de Lisboa


[1] M. DOLZ, São Josemaria Escrivá, Lucerna, 2011, 22.

[2] S. JOSEMARIA, Cristo que passa, 20, cit. in M. DOLZ, São Josemaria Escrivá, 2011, 70.

[3] S. JOSEMARIA, Caminho, 1.

[4] S. JOSEMARIA, Sulco, 183.

[5] S. JOSEMARIA, cit. in El Itinerario Jurídico del Opus Dei, p.43

[6] S. JOSEMARIA, Cristo que passa, 64,

[7] S. JOSEMARIA, Cristo que passa, 76 cit. in M. DOLZ, São Josemaria Escrivá, 12.