Viver para os outros

O Senhor quer – demonstrou-o com o exemplo da Sua vida – que os cristãos pensem naqueles que os rodeiam e sirvam a sociedade. Está aí também o segredo da felicidade cristã.

Durante a última Jornada Mundial da Juventude, o Papa Bento XI reflectiu sobre a herança recebida das gerações passadas e animou os que o ouviam a construir, com a sua vida cristã firme, uma sociedade e um mundo um pouco mais humanos[1].

Cada geração há-de pensar no que deixará à sociedade, aos homens que hão-de vir, no que fazer – e como – para que no futuro encontrem um mudo melhor. «A fé ensina-nos que em Cristo Jesus, Verbo Encarnado, conseguimos compreender a grandeza da nossa própria humanidade, o mistério da nossa vida na terra e o sublime destino que nos espera no Céu (cfr. Gaudium et spes, n. 24). A fé ensina-nos também que somos criaturas de Deus, feitas à Sua imagem e semelhança, dotadas de uma dignidade inviolável e chamadas à vida eterna»[2]. A mensagem cristã permite reconhecer a verdadeira dignidade do homem e proporciona os meios para agir de acordo com a verdade.

A sociedade necessita do espírito evangelizador da Igreja, que nos transmite, sempre actuais, os ensinamentos de Jesus Cristo e o Senhor quer – demonstrou-o com o exemplo da Sua vida – que os cristãos pensem naqueles que os rodeiam e sirvam a sociedade. Está aí também o segredo da felicidade cristã: fazer-se portador da mensagem de Jesus.

O APOSTOLADO, MANIFESTAÇAO DA CARIDADE

O Senhor quer que os cristãos pensem naqueles que os rodeiam e sirvam a sociedade. Está aí também o segredo da felicidade cristã: fazer-se portador da mensagem de Jesus.

O apostolado nasce precisamente da consciência da missão de caridade a que Deus nos chama. O cristão é testemunha da caridade de Cristo entre os outros homens e da comunhão. Por isso, o apostolado não pode converter-se numa técnica, nem numa estratégia para levar as almas a Deus; tão pouco consiste num conjunto de deveres, pois a partir do amor torna-se natural e tem de se ter presente que a eficácia é divina, embora Deus conte com a disposição das pessoas.

Caridade e apostolado vão de mãos dadas; mais, pode dizer-se que são inseparáveis, pois a caridade aguça o engenho para descobrir como melhorar o nível do serviço aos outros. A mensagem recebida por S. Josemaria fala também da relação entre caridade e apostolado e indica-nos que ambas – a caridade apostólica, o apostolado vivido por amor – se identificam com a amizade: A caridade exige que se viva(…) a amizade[3].

Num cristão, num filho de Deus, amizade e caridade formam uma só coisa: luz divina que dá calor[4]. A virtude da caridade aproxima-nos profundamente do próximo; com a ajuda da graça, o cristão descobre no outro um irmão, um filho de Deus, irmão de Jesus Cristo; encontra o próprio Deus que nos entrega a Sua imagem feita homem para que a respeitemos e lhe demos a honra devida. O apostolado, que tende a identificar-se com a amizade, não é senão venerar – insisto – a imagem de Deus que há em cada homem, procurando que também ele a contemple, para que saiba dirigir-se a Cristo[5].

A caridade verdadeira é dstinta da sociabilidade natural e vai muito para além dos laços de sangue e de camaradagem entre amigos de diversão ou de jogo; também se distingue da compaixão que podemos sentir pela solidão e miséria alheias. A sua medida é o amor que Cristo expressou no “mandamento novo”, o amor divino, um carinho como o que tive e continuo a manter vivo, porque nasce do próprio interior da Vida da Trindade. Um amor que não se detém nos defeitos físicos ou de carácter, um desejo de estar com os filhos dos homens que não foi travado nem pelo pecado, nem pelo repúdio, nem pela Cruz. A virtude da caridade é o próprio Amor que Deus põe no coração do cristão para assumir e elevar sobrenaturalmente os amores humanos, os nossos desejos e aspirações.

Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor[6]. Parafraseando São João, poderíamos acrescentar que quem não ama também não conhece o seu próximo, porque não é capaz de reconhecer a imagem de Deus nos outros. A falta de caridade embota tanto a inteligência e as outras potências que torna a pessoa insensível aos pedidos do Senhor e impede-a de dar o agradecimento devido ao próximo. Mas o que é ainda mais grave, impossibilita de que o Senhor reconheça a pessoa na qualidade de Seu filho: é como se impedisse a Deus de tocar a alma de quem se fechou completamente à graça.

A IMPORTÂNCIA DE CADA PESSOA

A caridade adquire o seu pleno sentido quando nos colocamos ao serviço dos outros; quando aceitamos que a vocação cristã consiste em ser um dom para os outros, de modo que muitos encontrem a Cristo.

Foi o exemplo que o próprio Jesus nos deixou e de que nos falam as testemunhas da Sua passagem pela terra: alegra-se com as alegrias dos seus amigos[7] e sofre diante da sua dor[8]. Teve sempre tempo para se deter com os outros: sobrepôs-Se ao cansaço para falar com a samaritana[9]; deteve-Se com a hemorroísa, quando O esperavam na casa de Jairo[10]; e na dor da Cruz, entabula um diálogo com o bom ladrão que lhe abre as portas do Céu[11]. Além disso, o Seu carinho foi um carinho concreto: vemo-lo preocupado com o alimento dos que O rodeiam e a pôr os meios para satisfazer essa necessidade material[12]; interessa-Se pelo descanso dos discípulos e leva-os a um lugar afastado para gozarem da Sua companhia[13].Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas no fundo todos nos indicam a categoria que Deus atribui a cada pessoa.

Nisto se manifesta a amizade: pôr em primeiro lugar os outros e dedicar-lhes tempo, ou seja, trato pessoal. Foi essa a chave que nos deu S.Josemaria para mostrar Cristo e Jesus ensinou-no-lo com a Sua vida: teve sempre tempo para se dedicar a cada um, para se deter com todos. A caridade conquista o seu verdadeiro sentido quando a vida do outro se converte em prioridade da minha vida. As pessoas que se aproximam de um cristão autêntico hão-de descobrir o amor pessoal de Deus, ao sentir como são tratadas, como se lhes dá valor, como se lhes dá ouvidos, como se têm em conta as suas virtudes, como se lhes faz participar desta aventura sobrenatural.

Como ajudar as almas nessa direcção espiritual que, talvez sem esse nome, se dá no apostolado? Repara: se se tratam mal os instrumentos mais fortes e eficazes, ficam rombos, desgastam-se e inutilizam-se[14]. Expressado de uma forma positiva, trata-se de fazer ver a cada pessoa os talentos que recebeu de Deus e alguns modos de os pôr ao serviço daqueles que o rodeiam; estimula-se a sua iniciativa, como fez Jesus com os apóstolos formando-os um a um, procurando que todos dêem o melhor de si; interessamo-nos pela sua situação, pelos seus imperativos familiares ou laborais, colocando-nos no seu lugar; partilhamos os projectos, os desafios da sociedade de hoje, a missão da Igreja e da Obra num mundo que clama por sal e luz, ainda que o não saiba.

E tudo isso, temperado com o sal da caridade. A caridade é paciente, é bondosa; a caridade não é invejosa, não é arrogante, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda ressentimento pelo mal sofrido, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta[15]. A caridade está disposta a procurar o bem de todos, por isso requer um coração grande, generoso, que aprenda a superar os defeitos próprios e os alheios, as zangas, o mau humor, as respostas desagradáveis. É paciente, com fortaleza de espírito: sabe esperar, não humilha, suporta qualquer coisa por amor. Não murmura nem se alegra com a dor ou com as contrariedades dos outros, não procura sobressair. Tem sempre à mão uma palavra amável de compreensão e de serenidade.

O VALOR DA AMIZADE

S. Josemaria deu um exemplo de como ser amigos dos nossos amigos. O amigo, como os clássicos disseram, é como outro eu. Alguém que nos ajuda a tornar a vida mais agradável, que nos acompanha nos apuros e partilha alegrias e penas. É alguém em quem confiamos, porque nos podemos fiar dele. Costumava dizer que necessitamos deapoiar-nos uns nos outros, para percorrer o caminho da vida, converter em realidade os nossos anseios, superar as dificuldades, gozar do produto dos nossos afãs.

«O cristianismo não é obra de persuasão, mas de grandeza», disse Santo Inácio de Antioquia.

A amizade é algo que se comunica, que se nota, que quase se pode palpar: sente-se que estamos em sintonia com o amigo, que há afinidade, que estamos bem. Para um cristão, a amizade é assumida e elevada pela graça; consiste, no fim de contas, em comunicar aos outros a vida de Cristo. A amizade transforma-se assim num verdadeiro presente de Deus, inseparável da caridade.

Cada um deve aprofundar no valor que atribui à amizade, para sair do círculo limitado de pessoas com quem convive. O cristão há-de fomentar um são espírito de diálogo com todo o tipo de pessoas, evitando que as opiniões próprias o conduzam a discriminações injustas, ou que o seu modo de ser ou de dizer se torne odioso para os que pensam de modo diferente. Para o conseguir, é importante ouvir as razões do outro, interiorizar os seus argumentos; de outro modo não haveria verdadeiro diálogo, porque notariam que não nos interessa o que dizem: é preciso também saber olhar do seu ponto de vista.

Isto não significa transigir em questões que não nos pertencem, pois são de Deus, ou que – com medo de contristar – se ocultem o tergiversem os ensinamentos de Jesus. Uma atitude assim implicaria enganar aqueles que amamos, ou fechar-lhes o caminho à única verdade que pode satisfazer plenamente os seus corações e aplacar as suas inquietações. Melhor, a caridade de Cristo robustece as próprias opiniões ao mesmo tempo que tranquiliza o coração e adoça os modos de dizer. Desta forma, tornamos mais próxima a mensagem de Jesus, portadora de esperança e salvação: ao dar um conselho, ou ao corrigir uma atitude, o carinho faz com que as nossas palavras não firam, nem pressuponham que se está a julgar o interessado; faz, de facto, que sejam compreendidas como o que são: desejo sincero de que os nossos amigos sejam felizes.

Experimenta-se, então, a profundidade daquelas palavras de Santo Inácio de Antioquia: «O cristianismo não é obra de persuasão, mas de grandeza»[16]. Essa grandeza é a caridade de Cristo, pois as pessoas aproximar-se-ão de Deus não tanto pelos nossos argumentos, mas sobretudo pelo que somos, com a graça de Deus.

Cada geração de cristãos deve redimir e santificar o seu tempo: para tanto, precisa de compreender e compartilhar os anseios dos homens, seus iguais, a fim de lhes dar a conhecer, com dom de línguascomo corresponder à acção do Espírito Santo, à efusão permanente das riquezas do Coração divino. A nós, cristãos, compete anunciar nestes dias, ao mundo a que pertencemos e em que vivemos, a antiga e sempre nova mensagem do Evangelho[17].

J.M. Martín y C. Cavazzoli

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[1] Cfr. Bento XVI, Discurso, 17-VII-2008; Homilia, 19-VII-2008.

[2] Bento XVI, Homilia, 19-VII-2008.

[3] Temas actuais do Cristianismo, n. 62.

[4] Forja, n. 565.

[5] Amigos de Deus, n. 226.

[6] 1 Jo 4, 8.

[7] Cfr. Lc 10, 21.

[8] Cfr. Jo 11, 35.

[9] Cfr. Jo 4, 6 ss.

[10] Cfr. Mc 5, 30-32.

[11] Cfr. Lc 23, 42-43.

[12] Cfr. Mt 14, 15-16.

[13] Cfr. Mc 6, 31.

[14] Sulco, n. 391.

[15] 1 Co 13, 4-7.

[16] Santo Inácio de Antioquia, Epistola ad Romanos, 3, 3.

[17] Cristo que passa, n. 132.